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Cronicas-->Voyeur -- 17/02/2016 - 11:00 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Faz um certo tempo que eu a observo. Sei quando ela chega pois, daqui de minha janela, posso ver seus passos de um cômodo a outro. Ela anda suave, meio molenga de tanto dia, como se a noite fosse sua segurança, seu vigia. Ela passa pela sala e eu vejo um vulto semi-fosco passar pela cortina esvoaçante. Lá vai ela: Larga os sapatos na saleta, acende a televisão, o brilho azulado bruxuleia no cômodo; acende-se a luz do banheiro, ouço sua mijada longa, aquela que se dá numa liberdade absoluta, na solidão da casa silenciosa, de porta aberta, sem rumores ou freios.

Acende-se a luz do quarto, quase posso ver seu alvo pescoço sendo liberto das cangas do trabalho, dos cordões ornamentais e dos crucifixos que toda mulher precisa pendurar para dizer que é de alguém ou para confundir nossa laia, dizer que não é de ninguém e que nada a cerceia; tenho orgulho de conhecer moça tão livre. A cortina do quarto delineia seu vulto de formas perfeitas, uma silhueta que permite, entre um sopro e outro, entrever flashes de coxas, uma bunda empinada e seios que dizem a que vieram. Eu sei que é assim, apesar das sombras esfumaçadas que a cortina me passa. Eu a vejo perfeitamente assim, como a desenho em meus cadernos espiralados, mil cadernos que a têm como modelo, morando num apartamento fino e alongado: Quatro cômodos em H. Banheiro ao fundo, ao lado do pequeno quarto, uma área de serviço escondida dos olhos meus e uma sala onde ela se joga, com a garrafa de uma cerveja para mim desconhecida, agora.

Tomo a liberdade de dizer que a espiono e se tudo o que digo vem da imaginação, muito do que sei vem da realidade perfeita que se delineia em meus cadernos; eu a estudo como a uma borboleta. Não tenho sono, este me fugiu há anos, então eu observo e minha encantadora vizinha tem presença garantida em meus rabiscos; chego a saber qual a cor de sua roupa só pelas lâmpadas refletindo: Tem um dia tons de azul claro, noutro, quando ela chega de determinadas noitadas, arde em vermelho rubro. Já a vi de amarelas calças e de negros betumes, nos dias maus em que ela se aparenta mais a uma perfeita bruxa com o olhar maligno que lança à nuvens.

Ela agora, balança a garrafa entre seus dedos enquanto folheia uma revista que eu já vi, pois tenho olhos potentes que me acompanham. São revistas de moda e design, são páginas de vestidos, calcinhas, lingeries e desfiles intermináveis de moças em poses lânguidas, que ela entrevê sempre se imaginando no corpo delas, que eu sei porque conheço de longe a alma de toda mulher que se preze. Tomo a liberdade de dizer que eu a vejo mais como extensão de mim mesmo do que ela jamais poderia sonhar; Não é Jung que diz da parte feminina que há em nós? Pois bem, ela personifica o que há de angelical e de diabólico, Maria e Lilith, céu e inferno, babando de sono e tesão entre as páginas de ocas revistas solenes.

Vejam, lá está ela. Ela bem que tenta fumar, apanha um cigarro, começa a tragar e indefectivelmente, joga longe o maço e tosse, intoxicada pelas cinco mil fumaças do veneno que porta nas mãos. Definitivamente, minha amiga, eu diria, minha amante, eu até diria mais, minha esposa, jamais fumou e jamais fumará. Aquela boca vermelha, cravejada de alvos dentes, só consegue bebericar antes de dormir sentada frente aos inevitáveis noticiários soníferos de tanta rotina e pasmaceira( tem uma hora que, de tanto se repetirem nulidades, a mente anula o nulo e o Nada se instala entre uma pálpebra e outra). Não falei? Ouviram este barulho? Seu copo escorregou de sua mão e caiu, felizmente sem se quebrar, mas inevitável o impacto e o consequente palavrão "merda" que ela profere e é difícil imaginar minha esposa assim, dizendo merda, porque um copo idiota lhe cai das mãos sonolentas. Copo idiota, merda! Justamente um copo de merda. Nada pode afetar assim esses lábios grandes e carnudos, que num lampejo de raiva, se erguem para pegar a merda de copo.

Não falei? Hoje está calor, ela veste uma camisola justa, que mais mostra que esconde o que pretende ser uma visão maravilhosa. Às vezes penso, eu aqui, observando minha perfeita vizinha, com sua roupa de nuvens, com seus lábios carnudos, seus olhos de jabuticaba, imaginando sua tatuagem de borboleta que ela carrega entre suas costas e suas nádegas...Eu assim a imagino, perfeita, guardada em um canto, chorando porque lhe mandaram uma carta infame, ou porque o maldito mandou uma mensagem que ela não gostou; Coisas de tempos modernos, aquisições que eu bem o sabia, ela não devia ter. Devíamos, eu e ela, pertencer a uma corte do século dezoito, onde somente cartas imensas nos comunicavam os amores, as contrapartidas, os duelos e as mortes. Não, hoje é tudo mais fácil e por isso, menos humano, mais maquinizado.

Ah, bendita lufada de ar, que enche sua cortina de um vulto, uma brisa que ela recebe no rosto, ah, suavidade de beijo que eu lhe dou no rosto, na face, contemplando os minúsculos pelos sobre seus lábios superiores cheios de gotas de suor, contemplando de baixo para cima os dentes na boca entreaberta, pianos de luz e encimados por dois olhos negros, brilhantes; definitivamente, eu sei que é assim, pois que assim a vejo e sempre vejo... Bendito é o vulto de vosso ventre, minha linda vizinha de olhos negros e cabelos cacheados, de furinho no queixo, de corpo de gazela, sim: Eu a espiono, eu sigo seus passos, não sem antes saber da hora que chega para depois de algum tempo, fechar com calma minhas janelas, desligar as luzes, descer, atravessar a rua, tocar a sua campainha...

--Posso subir?
--Pode, voyeur! Pensa que não percebi? Você não se emenda!
--Vinho tinto ou branco?
--Hoje, Rosé.

Ah, bendito o fruto de vosso ventre, mundo.

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