Dia seguinte, no bar do seu Antunes, borocoxô geral. Sabe o seteaum? Seteaum de volta. Todos cabisbaixos. Seu Antunes nota o clima de velório porque conhece seu povo: Ele já foi Diretas Já, apoiou um camarada que deu em nada e um outro que deu no que deu. Ele mesmo já acha que não dá mais para segurar a onda. Medina surfando nas ondas do cotidiano, seu Antunes se ergueu do nada trabalhando com panos de prato e lápis na orelha. Se o que tem é pouco, dá para viver sem explorar o outro e é o que faz dele o dono do bar mais festejado. Houve dias em que seu povo entrou colorido, outros houve que entrou fugido sob a mesa; houve alarido, houve bagunça e teve até ordem do dia, seu Antunes ali ficou solerte como um bastião da vida alheia, sem ser ele mesmo um beneficiário de tantos segredos ali urdidos ou confessados.
--Seu Antunes!
--Diga, orapois.
--Dá duas aqui para mim que as outras eu pago para a turma toda.
--...E por acaso eu não sei de sua situação? Minha caderneta tem seu nome na ponta e sua mulher, aquela santinha, não ficará nada alegre de lhe ver aqui desperdiçando tanto por tão pouco.
O homem se coça, coça a cabeça, se agita como se tivesse um inseto no corpo.
--Deixa ele falar, seu Antunes.
--Pois é, seu Antunes. Pior é que não dá para ser tão pouco, porque por muito menos eu já me velei inteiro sem dormir dias e dias, pensando na situação de tantos irmãos que, como eu, ficaram à míngua...
Várias cabeças se mexem, como que concordando, mas desanimadas ainda. Ninguém ergue um rosto, não se veem alegres insolências se levantando no ar como injúrias de moleques travessos; todos bebericam algo, ou olham os copos vazios, ou comem a azeitona que teimou em sobreviver feito um escaravelho no deserto do prato pleno de ar.
--Eu também, por muito de menos fiquei foi demais da conta. Para mim, o que era sonho se acabou. Vai-se um conto a mais para os tantos que teci na minha madrugada vazia...
--...Ah, o poeta de sempre! Até com a desgraça ele canta.
--...Porque o instante existe e um dia eu sei que estarei mudo...
Em coro, alguns levantam os olhos brilhando e de dedos para cima, completam:
--E mais nada!
Seu Antunes, vendo embaralharem-se sonhos, vertigens, caminhadas, balaios de gato, humildades e talvez temendo que sua freguesia se atire de uma ponte ainda inexistente naquelas paragens, arremata com inatacável voz cristalina:
--Ó irmãos das fugidias coisas, vós que pensais como carneiros, não se deixem levar pelos sonhos dos outros. Velai pelo que é vosso, velai! Sabei que mesmo nos navios que traziam muitos de vós, cantava-se a canção da s'perança!
Um e outro se voltam ao orador que lava os copos enquanto declama de cabeça o que sabe; o que não sabe, inventa de bom esmero e o que não inventa de todo, arremata em rica rima.
--E se não tendes vós gosto e vaidade, e se em vós dança a asa ritmada, uma vez que sabeis que um dia estareis mudos, lutai pelo que é vosso!
Um copo se toca no outro. Um tilintar precede a manhã que se alvoroça, um sabiá ressabiado captura um pão arredio que andava esquecido numa mesa distante; voa de fome satisfeita e com certeza com os filhos mais satisfeitos ainda.
Num canto começa o hino e num canto termina a canção:
--Eu canto, porque o instante existe! E minha vida está completa! E não menos alegre nem mais triste, sou um verdadeiro poeta.
Seu Antunes tem uma lágrima num olho; com o lápis, anota que este corre por conta de todos. |