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Cronicas-->A Porta -- 17/05/2016 - 15:08 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Som de zunzum na sala de espera. Reunião de Pais e Mestres na escola da filharada de toda aquela gente. Com um cuidado extremo, uma mocinha equilibra, entre um pé e outro uma pedra que trouxe de umas cordilheiras quaisquer. A pedra tem tons verdes, meio que brilha e o guia lhe disse que ela tem tons de cobre, principal riqueza do país de origem dele e da pedra. A mocinha se lembra das crateras, dos vulcões extintos, da claridade cegante dos picos nevados, do ar puro da montanha amortalhada de frio e dos cursos d'água fervilhantes que jorravam dos vales para onde ela dirigia os olhos.

Sua mãe tem ar preocupado, a menina tem a pele branca dos descendentes europeus e os olhos castanhos dos descendentes da terra. Bem à sua direita, mais uma mãe tem o ar de incredulidade: Como, e por quê, tal reunião em tal hora? Ela só podia pensar no pior, talvez a exclusão de seu filho de colégio tão reputado, ou mais ainda, a leitura de uma advertência em público que bem poderia ser feita no privado. Privado, mundo privado, mundo doméstico—Ela não tinha tempo, desde que seu marido também não o tinha e vivia viajando, tentando manter o que restava de sua exígua família; o menino, amuado, a olhava de relance, sabendo de sua culpa, ou talvez formando dentro de si a culpa que todo inocente tem até saber-se culpado de todos os pecados do mundo. Ele mascava um chiclete sem muito entusiasmo, porque não queria chamar atenção. Não queria chamar qualquer atenção; talvez ele mesmo soubesse que tudo aquilo se deveria ao seu perpétuo esconder-se atrás de notas apenas regulares, uma vez que sabia de tudo e, propositalmente, para não levar vexame na classe, errava coisas tão óbvias que sua fama era a de burro. Só ele sabia que sabia demais, então sabia de menos para que os outros o deixassem em paz. Queria apenas ler, visualizar seus sonhos e pensar nos possíveis futuros...E sua mãe mordia o canto dos lábios, como se dissesse: “ Viu, o que você me arranja agora? ”.

Um tictac chamava-lhe a atenção, era um pai vestido com um terno azul-escuro, os cabelos bem ornados e meio que abrilhantados de gel. Ele olhava o relógio e via que minutos se transformam em horas, horas em dias e dias, em anos. Basta apenas um querer, um imaginar-se fora dali, mas ele está sempre presente. Se o está de corpo, menos ainda está de espírito.

O Tic tac vem do bater da ponta do sapato do pai bonitão no chão de pedra fria e polido da sala dos Pais e Mestres. O barulho também de algum relógio destes gigantes pendurados em uma parede ao canto soa melancólico o passar das horas exaustas de serem medidas, metodicamente e invariavelmente tensionadas, puxadas e esticadas, um instrumento de escravização do Homem pelo Homem. O Tal menino que tudo vê sabe que ele é o pai de seu amigo, que como ele, tem o hábito de velar-se, como ele o faz. Esconder-se, camuflar-se para que as meninas bonitas não o torturem com sua cara espinhenta e nariguda. Uma vez disseram a ele, e ele ouviu bem, que duas vidas seriam necessárias para que ele desse em cisne. Duas vidas, não uma só! A partir daquele dia, os dois haviam se tornado amigos porque compreendiam que a mediocridade pode esconder melhor o ser humano das tacanhices do mundo sórdido e mal-encarado que é o mundo do Colégio Privado das Emoções Previsíveis: Era assim que o chamavam.

Tiquetaque.

De repente, um rumor. Uma onda se apresenta, um estalar de juntas começa a compor-se e sobrepuja o estalido do tempo, que se torna menos monótono e mais coeso. O alarido de bolsas sendo erguidas, maletas sendo fechadas e gargantas sendo raspadas, num sentido de espera perfeita ou mais que perfeita: A porta da sala se abriu, o coração do menino se contraiu, o chiclete se tornou amargo e espesso porque sua saliva secou; a mocinha deixou a pedra rolar pela encosta do morro formado pelos seus pés e os de sua mãe que sorriu de leve um riso amarelo, esquecendo das montanhas com a brevidade das avalanches que ribombavam no terremoto avassalador que se seguiria. Ela procura a pedrinha verde na selva de pés e pernas, os pais todos formam uma massa que respira e aguarda impaciente para entrar pela porta que só deixa passar dois, três por vez. O pequeno se fará grande, pois que a minúscula porta dá para uma ampla sala onde a vidraçaria deixa ver atrás as velhas árvores que cobrem o pátio onde brincam mais uns e outros, esquecidos que estão do que vieram fazer ali seus pais. Céticos, preferiram brincar, correr atrás de pombas de todas as cores ou do gato que persiste em tentar as amizades falsas que lhe oferecem as mãos sempre cheias de pedras desses pequenos cabeçudinhos.

Entram os pais, em uma ordem aparente, ficam os culpados para trás, sempre com os olhos enevoados de tanta luz e gás, a secretária do diretor passa, com seu andar ligeiro de sempre e toda a multidão entra, sem nem olhar para trás; quem os olha, a ela, com sua pedra esmagada em poeira andina e a ele, o tal menino mascador, é o famigerado bedel, óculos grossos de uma lente verde, os olhos falsamente aumentados e o risinho falso de quem diz, entre dentes, que eles estão perdidos. Que eles serão sempre culpados, antes de serem inocentados, que a lógica formal que os assiste de um lado, sempre os deixará à deriva do outro, que é o lado dele e da sua voz anasalada, de seus óculos de lentes grossas e de suas mãos calejadas de tanta espera e tantos sonhos esfarrapados.

A Porta, bem aquela ali, se fecha.

O Bedel os manda sair:

--Vão pro seu luguá, vão pro seu luguá, lá em fora.

Eles sabem qual é o lugar deles; caminham, caminham e encontram a escadaria e seus passos mortos, eles sabem que seus passos são iguais aos que foram aos dos antigos alunos e que serão os seus e os de seus filhos e os de seus netos e não importa o que façam, sempre, sempre, eles darão as mesmas voltas, os mesmos ritos se cumprirão e eles morrerão sem saber da profecia que se cumpriu naquela sala, atrás daquela Porta.

Só lhes resta descer, olhar para as copas das enormes árvores, dar-se as mãos e fugir ao encontro da zombaria dos que ficaram no pátio efêmero do mundo.

Tiquetaque.

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