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Cronicas-->Ave, Maria. -- 28/05/2016 - 00:39 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Ela chegou de mansinho. Já mulher madura, aparentando cerca de sessenta anos, tinha mais do que isto. Eu creio que o que mantém a mente alerta com certeza mantém o corpo ágil e nunca poderia prever que encontraria provas de minha teoria na vida prática; sabem, na verdade sou um prático muito mais do que um teórico. Não divago muito a respeito porque as flutuações podem soar como algo pretensioso num conto, assim como num romance podem parecer como dissimulações desnecessárias. Eu digo que a mente determina os corpos e a realidade nada mais é que um reflexo destas determinações e a prova está bem à minha frente: Chama-se Maria, tem sessenta e oito anos e um sorriso de gente simples que me agrada muito mais que os trabalhosos sentimentos evocados por pessoas de origem mais elevada, sempre dispostos a ocultarem tudo o que podem do outro, menos aquilo que lhes interessa.

Dona Maria veio com a mais prosaica das queixas: A coriza, a dor de cabeça, a dor nas juntas, a gripe. Neste seu caso, a mente mais do que aprende a distinguir os motivos do corpo e de seus minúsculos invasores, com seu cortejo de fluxos, dores e vertigens. A mente pode ordenar, neste caso, que seu corpo vá cuidar do que mais à mente interessa; neste caso, acuso-a de ser elitista, porque nas periferias do que ela mantém sob escravidão, tecidos crescem sem medo, cabelos não sente as diferenças de temperatura, células da pele morrem e nascem todo momento, enquanto que ela se locupleta com a horda de sentidos e só seleciona o que mais a incomoda:

--A dor de cabeça, seu doutor. Um horror, há dois dias que não durmo direito. Quer dizer, porque dormir direito para mim é um luxo.
--Como assim, dona Maria?
--Eu sei o que é dormir, mas desde que meu marido me abandonou com cinco filhos para criar, essa coisa de dormir sempre foi café pequeno. O senhor sabe, se é que posso lhe chamar de senhor...
--Claro!...
--Pois é, o senhor sabe que filho não dá trégua. Ele foi-se embora, doutor, mas eu, que sou nordestina, jamais que ia me dobrar! Daí que tive de me virar em duas, uma para cuidar da casa, outra para trabalhar.
--A senhora com cinco filhos ainda tinha que trabalhar? Ninguém lhe ajudava?
--Com a família longe, quem é que vai prestar atenção? Não! Eu não queria. Eu fui à luta.

Fiquei olhando aquela pequena mulher, forte como uma árvore, olhar luminoso de tantas lutas--eu a imaginei sendo jovem, bastando-se a si mesma, sem marido e cinco filhos para cuidar.

--Sorte que meu filho mais velho já me ajudava cuidando dos mais novinhos. Ele ficava de dia com os meninos e a menina e quando eu voltava, ainda ia estudar à noite.
--E a senhora trabalhava de quê?

Ela se empertigou e sua mente, sabedora da importância que tivera e tem sobre aquele corpo de hábil luta, permitiu-se voltar às origens e minha mente habituada ao mecanismo das doenças fascinou-se com a luz que ela tirara de sua própria solidão.

--Fui de tudo um pouco: Ajudei numa creche, fiz limpeza, fui diarista, copeira, trabalhei até no Ceagesp, mas de luta em luta, fui formando meus meninos e a menina, que ainda mora comigo. Ela é minha prenda, seu doutor, minha pomba branca. Ela diz que vai morar comigo até o fim, eu digo para ela não se avexar, porque eu sei do que eu posso e o que menos quero é depender de mão alheia. Pois que, nesta luta toda, sem meu marido velhaco, eu tenho casa própria, meus filhos são todos formados...Menos um.

Noto a ruga de tristeza em Maria, a nota de tristeza que têm todas as Marias do mundo que por mais que sejam fortes, jamais superam a dor da perda inevitável que pode acontecer, que deve acontecer certamente todos os dias; ela é forte, mas se enternece...

--Pois é, seu moço, meu filho do meio se foi num desastre, caiu de uma altura bem grande em um ônibus de viagem. Estava indo fazer um encontro com estudantes, nunca viu a cor dos olhos do filho que sua mulher carregava e que hoje é meu neto predileto. Este meu neto predileto, doutor, adora ouvir histórias que eu lhe conto balançando minha cadeirinha de palha, a única coisa que sobrou do tempo da tristeza antiga, quando ainda me aprumava para que o marido chegasse, aquele traste que nunca veio de todo. Só vinha em partes, chegava troncho um dia, de maus bofes noutro, até que desapareceu com uma Joana qualquer. E lá fui eu a contar histórias aos meninos e à menina, na mesma cadeirinha que hoje balança com o peso de meu neto...

A mente é uma organização de lentes, eu penso, porque ela focaliza uma coisa de vez; se fosse de outro modo, como Maria teria suportado tudo e ao fim superado tanta coisa, para hoje ter sua própria casa e com tantos filhos formados? Não, meus amigos, eu lhes digo, a Vida nãos se ensina nos livros. É neste sentido que digo que sou mais um prático que um teórico, avesso a estas divagações. Eu digo que a mente traça um destino que talvez lhe tenha sido escrito de certa forma em sabe-se lá que lugar. Uma vez traçado o destino, ela sai à procura das possíveis saídas. Maria poderia ter escolhido sofrer, vendo a família se desagregar em mil pedaços; poderia se entregar ao primeiro que viesse e seria mais um traste em sua vida. Ela escolheu viver, o que não é pouco, dadas as circunstâncias.

Maria escolheu viver: Viver com cinco filhos, trabalhar por si e por eles, julgar como se formariam, ajudar no que fosse possível e tanger suas pequenas mentes em formação. Ela conseguiu o que queria e se hoje tinha o sentido de ter perdido um, sabia que tinha os outros no bom caminho. Não sei se vocês, como eu, acreditam em algo mais que o corre-corre de nossas vidas provisórias; eu creio que, ao ouvir Maria, eu soube aproveitar o que de melhor sua essência podia me dizer, sendo que ela ficou sem receita!

--A senhora não quer uma receita?
--Moço, o senhor já me deu o melhor dos remédios!

Tascou-me um beijo lascado no rosto!

Estas Marias...

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