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Cronicas-->A JANELA -- 02/07/2000 - 08:16 (ida lehner de almeida ramos) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A Janela

Configurou-se-me, em moldura de batentes, um quadro surrealista: - à janela, uma mulher de meia-idade agitando o que me pareceu ser, a princípio, bolas inefáveis de algodão colorido e que, verifiquei depois, eram apenas pompons de lã de várias tonalidades. Ela ria, a mulher. Parecia satisfazer-se com os cordões a que estavam presos os pompons, lançando-os para cima, para baixo e lateralmente, ora à direita, ora à esquerda, dinàmicamente, formando desenhos inusitados no ar.
Voltei meus passos para observá-la melhor. Losangos, trapézios, figuras exó
ticas, tudo constituindo uma alegoria sem precedentes de um estranho balé. A janela, senti logo, fóra eleita o palco principal. E a casa, embora velha, parecia vestir-se de espantosa luz no crepúsculo. Eu não tinha mais o que fazer e gastava meu tempo em flanar pela cidade, em busca de lembranças do passado, na terra do
meu nascimento. No momento, percorria a rua 15 de Novembro, teatro de mais de
mil peças ensaiadas em minha infància. Recordava-me de meu irmão Alfredo,ainda pivete, todo imponente à sela do Tobruk, fazendo misérias perante a meninada da
rua, às escondidas do pai Leandro, mas às vistas benevolentes de nosso avó. E me
lembrava também de sua vocação de líder totalitário ante a garotada que só tinha a
fazer bajulá-lo, a ponto de quase se arrastar a seus pés, Passei pelo antigo armazem de meu pai, sentindo um leve gósto de lágrima na boca.
Aí entao vi a mulher à janela de um prédio antigo como só ele.Confesso que me
intrigou profundamente aquela visão, que parecia dominar os títeres de um circo de
variedades, fazendo-os dançar, saltitar com certa graça no parapeito da janela O en
graçado é que as pessoas que por ali passavam nem se davam conta da presença da mulher. .-"Talvez estejam acostumados,"- pensei.- "Talvez a tenham como uma dessas figuras típicas das cidades do interior." Afinal, ela não mexia com fantoches,
o usual em espetáculos infantis; eu assistira certa vez ao "Piccolo Theatro di Milano"
e ficara maravilhado com a destreza e mobilidade dos bonecos. Não, eram só bolas.
. Agora, o que me estava deixando sem fala era o desempenho que a grisalha desconhecida estava tirando de seus pompons, habitualmente inanimados. enquanto permanecia alheia aos passantes. Resolvi investigar. Tinha ainda mais de vinte e quatro horas pela frente, antes de minha partida. Digitado o computa
dor da memória, a ver se algum nome me ocorria, nome de algum conhecido ou ami
go dos velhos tempos. Nenhum se revelou, a maior parte morrera ou tivera destino
ignoto para mim.
.Dirigi-me ao hotel com o pensamento voltado para aquela janela, palco inusitado
da cena que acabara de ver. Sentado no saguão, examinava cada face de cada pessoa que entrava ou saía pela porta gótica do hotel, a ver se, pelos atuais
traços, eu reconheceria a antiga gente da cidade. Nada,era tudo gente estranha,com
ar de turista, de viajante ou executiva, que não tinha raizes ali. Moradores da rua 15,
nem pensar. Quem sabe algum contemporàneo ainda vivo, que me valeria como fon
te de informação sóbre o arremedo de mistério.
. Fazia a barba para o jantar, quando me veio sùbitamente à memória
o nome de um cidadão que estaria mais ou menos com a mesma idade que eu. Se
vivo estivesse, Rolando Pompeu de Andrade, meu amigo de juventude, médico e
excepcional colecionador das coisas e fatos da cidade, não se furtaria a colaborar
comigo. Não seria difícil encontrá-lo, recorrendo à lista telefónica.
Depois de comer, requisitei-a junto à portaria. Quando a tive em mãos, no meu
quarto, busquei quase frenèticamente. . -"Andrade, Andrade..." Vibrei de alegria ao
encontrar seu nome, não só pelo motivo que me fizera dono de uma pesquisa, que
eu, respeitável senhor de avançada idade, não supusera nunca fazer, mas porque poderia rever o amigo de tantos anos. Não esperei o amanhã; naquela noite
mesmo telefonei para o Lando, que era como o chamávamos nos tempos de moço. Não houve dúvidas. Reconheceu-me a voz, deu uma larga risada e convidou-me
para ir a sua casa, na Chácara Urbana.,- "Vamos tomar um drinque e conversar so
bre os tempos memoráveis e imemoriais de nossa juventude. Mandarei meu motorista ir buscá-lo. Qual o hotel:?" - - "Não precisa. Vou agora mesmo."
Um táxi levou-me até lá. Fiquei surpreso com sua energia e aparente disposição,
afinal era mais velho que eu e fazia bem mais de uma década que aposentara o bisturi e as mesas de cirurgia. Fiquei sabendo que estava viúvo, bem de vida e de
saúde; dedicava-se mais que nunca à memória da cidade.
Fui direto ao assunto, deixando para mais tarde nossas lembranças comuns e a
visita às coisas antigas que tinha num salão do sub-solo. Indaguei--lhe sóbre a es
tranha figura que me marcara vivamente aquela tarde, sobretudo sobre a coreogra
fia que os seus pompons, elaboradamente, executavam. Eram verdadeiras mario netes em suas mão, como eu jamais tinha visto. O que signicavam? Quem era ela?
Sorriu: - "Tudo tem relação com a janela. O nome dessa mulher é Càndida, não
é do seu tempo, Raul. Veio do interior do Estado, Americana ou Limeira, não me lem
bro, mocinha, menina ainda, diziam, filha de um usineiro de açucar já falido."Acen
deu um charuto. - "Era uma jovem nem bonita nem feia, mas que chamava a atenção pela extrema vivacidade, pelo eufórico entusiasmo que punha em tudo, em todas as coisas que empreendia. Pelo menos durante o tempo que em que a conheci. Era..- sabe o que? - a encarnação da própria vida. Ficou noiva duas ou três vezes, isso eu
soube depois. Mais tarde, você compreende, meu cursinho em São Paulo, minha
ausência de Jundiaí para fazer Faculdade em Curitiba... Nunca mais pensei nela."
O Lando parou para renovar o meu uisque e pór gelo no seu. - "Não sei o que
aconteceu com Càndida. Em minhas férias do segundo ano, já não a encontrei nas
domingueiras do Clube, de que parecia ser fiel e permanente devota. Nem questio
nei sua eclipse das rodas sociais, mesmo porque ela jamais fizera parte de minha
turma. Em 1963, já médico, estabeleci-me com meu consultório de ginecologista na
cidade, como você deve estar lembrado, nas visitas que vez por outra me fazia.-" ,
- "Ë, nessa época, estivesse onde estivesse, eu vinha todo ano rever os amigos. 1963, 64, batia uma saudade e eu voltava para Jundiaí. " - "Pois é. Logo depois
Càndida procurou-me, com o aspecto um tanto envelhecido. Triste. É isso, triste,
m uito amarga, Teria no máximo seus trinta anos. Relutante, a medo, contou-me seu problema. Qeria ter um filho, a qualquer custo. Já procurara colegas meus em São Paulo e em Campinas, mas a má formação no útero a impedia de gestar."
- "Ela estava casada, então?"- "Não, sua amargura fez-me confidente; des fizeram-se em núvens seus noivados, nada lhe dava certo, não lhe importava ser mãe solteira Lançara um desafio ao mundo, veja você. Examinei-a como cliente
especial, pedi-lhe exames complementares e lhe prescrevi um tratamento rigoroso.
Depois de meses infrutíferos, de esperanças e derrotas alternadas, desistimos.
.E fiz então o aconselhamento: - se a natureza não cooperava, o jeito era a
adoção, hipótese rejeitada por seu companheiro na época. Desde essa consulta,
nunca mais a vi. Soube, muito tempo depois, que adotara uma menina e que o casal,
de comum acordo, se separara."
- " Mas o que trem a janela a ver com tudo isto?" Lando soltou uma baforada:
- "O relato que me fizeram tem algo de lendário e você pode julgar como quiser.
. Para prover a si e à filha, Càndida aprendeu a fazer pompons, para enfeitar roupinhas de criança. É, simples pompons, desses que estão no amariio de todos
os sapatinhos e golinhas de bebê, me parece. Era voz corrente que ela se tornara mestra em sua arte. Fazia-os de todos os tamanhos e córes, conforme a clientela lho requisitava. Até para a ornamentação de fantasias de carnaval era procurada e acabou, por tabela, criando mesmo pingentes de cortinas. Empregava na manu
fatura os mais diferentes artigos como matéria- prima, alguns com brilho, outros sem; usava ráfia, lã, sêda e sei mais o que. Ficou conhecida na cidade e
nos arredores, sempre sòzinha, afastada de homens. De sua casa fez a indústria,
o depósito e ao local de vendas. Assim me contaram, assim eu conto a você."
Eu tinha urgencia de saber mais¨- "E daí?" Lando riu de minha pressa: - "Espere aí, os anos lhe trouxeram impaciência? Isso é coisa da mocidade informatizada, di
nàmica, de agora, meu caro. Pois lá vai, mas aproveito para tomar outra dose.. Não quer? Não importa, bebo sozinho." E retomando o fio da narrativa: - "A esse
tempo, Càndida residia na casa da rua 15, parece que como única herdeira do espólio do pai. . Não me pergunte como foi nem como o fato chegou a meus
ouvidos. Só sei que uma tarde, depois de cumpridas as tarefas caseiras e de ter aviado novas encomendas, Càndida se pós à janela junto com a filha, que teria
no máximo dois, três anos. Não se sabe se alguém a chamou, algum vizinho dos fundos, talvez, ou se foi à cozinha ou ao banheiro, o fato é que se demorou apenas
alguns instantes. Deixou a pequena sentada no parapeito, brincando com uma caixinha cheia dos produtos da casa, feitos com exclusividade para ela."
O velho Lando mostrava-se embargado, , talvez em razão do uisque ingerido: - "Quando Càndida voltou para a sala, a menina tinha desaparecido. Não é preciso dizer do desespero da mãe, nem das providências tomadas por quase toda a cidade. Candida revirou céus e terra, pós todo mundo de pernas para o ar, recor
reu à polícia, à imprensa, fdivulgou fotos da garota em boletins, em jornais daqui e de fora. Qer saber? De nada adiantou. Hoje Càndida é essa figura folclórica, atra
ção para os que vêm de fora.; para os moradores antigos, já nenhuma atençào
desperta. Salvo para alguns, entre os quais me incluo, que em memória dos tempos idos, a auxiliam em sua manutenção."
Realmente, a historia de Càndida me deixou empolgado. À medida que o Lando desenvolvia o relato, mais e mais queria saber o seu final, tal uma ave que,
enlouquecida pela vontade, busca qualquer superfície d´água para se desseden
tar. Até pensei sèriamente em dar minha contribuição mensal para a infeliz.
Acontece que, sanado o problema, volta-se para outros vóos, para outras paragens. Dali a conversa com Lando tomou o rumo das reminiscencias pessoais, depois conheci o verdadeiro depósito de antiguidades que possuía. Procedeu como
um autêntico anfitrião, oferecendo-me o quarto de hóspedes para passar o resto
da madrugada. Recusei, mas não pude recusar a deferência do carro com moto
rista para voltar ao hotel. Tomado por um sono que me tornava cambaio, mal con
segui tirar a roupa antes de cair nos lençóis.
Adormeci em poucos minutos, como um verdadeiro justo. Nenhum sonho, nenhum pesadelo. Lembrei-me apenas vagamente da hora em que deveria
acordar nesse mesmo dia, do regresso à Capital e dos problemas que o trànsito
me apresentaria, já que esse domingo marcara o fim de um feriado prolongado.
As longas férias que eu mesmo me proporcionara tinham chegado ao capítulo
final
Voltava eu assim, feito ave, para outros vóos, outras paragens, outras respon
sabilidades. A história de Càndida, da janela e dos pompons, ficava apenas na
memória, quem sabe para tema e motivo de um conto futuro.

Ida Lehner de Almeida Ramos

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