Os dois amigos sabem que mais dia, menos dia, eles terão de conviver com ela. Terão de encarar de frente e com coragem a mocinha que já anda rondando de todos os meios, meio que embutida na paisagem, uma espécie de aviso sonoro que não deixa de ser ouvido se é trazido à tona, como uma frequência basal...vocês sabem? Aquele zumbido que não quer calar e talvez por isso mesmo seja tão suave a ponto de não se fazer ouvir durante os dias, no trabalho e nas ocupações a que nos jogamos para fugir...dela. De noite, quando eles se lembram, a sorrateira já se apossou de um quinhão dos bons deles, na calada, à socapa. A amargura vem, é inevitável.
--Pois é, seu Zé...
--Macambúzio hoje?
--Meditabundo, eu diria.
--Isso é antigo...
--Pois é. É este o ponto.
--Exatamente, chegamos ao ponto. Cirúrgico, você, hein?
Ela sorri, faceira, bem no fundo de seus copos. Ela se refrigera em nossa destemperança; qual o quê, ela é ilusória, porém mais que passageira, leva-nos de roldão. Enquanto bebem à saúde um do outro, rememorando tais e quantas coisas que passaram pela vida de um e do outro, ela refaz as contas, mais uma vez, metódica e maníaca. Ela é maníaca, eles sabem, eles entendem...
--Meu amigo, quantos anos...
--Tantos que já não se contam. Só agora passei a sentir o peso de tal realidade.
Um olha o outro, que olha um como num espelho. Ambos deixaram de ser moços; ambos passam dos sessenta, como se uma placa anunciando “Aqui Passa o Trópico de Capricórnio” estivesse pregada bem no meio da mesa. Não são irmãos, mas agem como se fossem. Casaram na mesma época, tiveram filhos (um deles dois meninos, o outro um casal), compartilharam os destemperos da solidão disfarçada do casamento, as crises que um apaziguou no outro naquele bar sem nome nem endereço.
--Sessenta!
--...Pois é. Há cerca de cem anos, um homem de cinquenta era um ancião!
--Hoje, somos novos velhos.
--E, como novos velhos, havemos de ser sempre moços...
--...Embora nossas esposas não acreditem. Elas se apegam ao que fomos, nós sabemos o que seremos, pelo menos eu acho.
--Você, sempre filosófico.
--E você, sempre o mais prático.
Os dois se olharam ao mesmo tempo. Havia num deles uma inquietude que o outro ainda não elucidara.
--Meu velho, eu acho que você hoje está mais filosófico que de costume. Tenho anos de prática nisso!
--Você adivinhando? Não quero crer que desenvolveu habilidades até então insuspeitas...
--Diga logo, desembuche!
O outro parou para bebericar. Com o rabo dos olhos, viu o outro sondando-o. Guardava a notícia para o fim. Saboreava assim sua possível vitória.
--Que é?
--Meu caro, você jamais poderia ser um bom jogador de pôquer. Muito menos um espião frio.
--Com cristalina certeza!
--Então, fale!
--Vou ser avô!
--Não!
--Palavra de escoteiro.
Estupefato, o outro o mirava incrédulo.
--Você sabe o que significa isso?
--...Ela se anunciou em três sonhos lindos. Sei o que significa, mais do que eu pensava que seria possível.
--No mais das vezes, ser avô é mais do que ser titio.
--Bem mais...
--...Mas que boa notícia!!!! Muito emocionado. Pensei que um de meus meninos é que ia me dar esta dianteira. Finalmente, você venceu!
--Vence quem vai mais devagar e por último!
Ergueram o copo cada um e cada qual bateu e tilintou no outro. Ela, a sorrateira, torceu as mãos estremunhada: Não fora ainda desta vez que ela vencera. Os sonhos persistiam ainda. Diz-se que morre ainda em vida quem fica empedernido, quem olha e não vê, quem respira, mas não aspira o perfume. Neste momento, vibravam dois corações de velhos amigos e a razão disso ela sabia, era a velha pulsação do élan vital. A luz sempre a fazia sucumbir nestas horas; menos mal que ela já sabia por onde se insinuar em outras vezes. Os dois velhos amigos se olharam e disseram, cada qual à sua maneira:
--Feliz ano novo, velho!
--Feliz ano velho, novato! |