Ele já se animava com a possível aposentadoria, essa que ninguém deseja, mas que a ele, talvez, interessasse mais do que ninguém. Havia anos que trabalhava sem cessar; os plantões eram cada vez mais difíceis pois, com o passar dos anos, acumulavam-se as lesões na coluna de tanto ficar de pé, ou sentado, ouvindo já com certa dificuldade as queixas dos pacientes.
--Boa noite!
--Boa noite. Seu doutor, me ajude!
--Ora, pois não!
Aí já contava com a ajuda de seu olhar refinado com anos de aprendizado e esperteza. Uma dor de cabeça podia ser um sinal de algo mais grave, assim como um olhar alucinado poderia ser a obviedade de uma loucura descontrolada...
--Queria saber se é verdade que o pessoal põe pó de vidro na cocaína.
--Você está doido, mocinho?
--Estou, completamente. Há três dias cheiro sem parar!
--Olhe aí, se pó de vidro sangrava seu nariz, cocaína inalada faz mais mal ao seu coração! Se cuide, José do Vidro!
Ele há tempos sentia, ao descer da cadeira, seu joelho estalar; com certeza, ele já contava com uma degeneração ali, não operou. Apenas observou a andança do tempo. E o tempo, senhores, passou, implacável, decidido, inexorável, mudo como as estrelas no meio de um campo enluarado. A aposentadoria, ele só de dizer à esposa, ela já ficava meio assim bronqueada.
--Como assim? Não pode! Como vamos pagar as contas?
--Temos de reduzir os gastos, temos de refazer os cálculos...
--Nisso, você está certo!
O que ficava no ar é que, estando aposentado, talvez ele não agradasse tanto estando em casa mais do que trabalhando, incansavelmente, nas noites em que qualquer um se deliciava com a cervejota. Ele, então, se conformava. Se tinha de dar plantões?
--Ora, ele que se vire (disse a colega que uma vez o vira cansado)
--Toma um bromazepan que passa.
--Haverá amor em sua vida?
Todos olhavam a jovem que perguntara assim, de chofre, à queima-roupa. Ela o admirava, apesar de ele ser entrado em anos. Ela o havia visto atuar junto a um paciente que praticamente chegara morto. Com sua calma, conduzira o caso junto aos jovens e ela se admirara como ele não perdera a compostura ao se ver defrontado com a morte. Mesmo ao fim de tudo, ele ficou uma boa hora de pé, junto ao pobre diabo, olhando para o alto e pensando...
--Que está pensando, professor? (Perguntou a jovem aluna que o admirava).
--Em quão gratos devemos ser e como devemos valorizar o que somos, estando aqui pelo menos mitigando e ajudando outras pessoas das mais diferentes maneiras... fazendo o que nos é possível fazer.
--Ele está ultrapassado! Dizia a tal colega que mal o considerava.
--Não concordo. Pode não saber das condutas mais recentes, pode não discutir da maneira mais acadêmica; inegável é o seu faro e tino para a gravidade. Admiro-o.
--Uai!
--Nossa, não pensara nisto.
--Não é mesmo?
E se aproximava a hora do velho esculápio, como vem o asteroide que irrevogável, bate na Terra daqui a sessenta milhões de anos. Como Rama em sua aparição desmesurada, como Buda embaixo da árvore que lhe iluminou o conhecimento de suas vidas passadas, como Cristo no Monte das Oliveiras, como Maomé ao receber as divinações de Allah, como Moisés com suas tábuas marcadas de tantas sagradas palavras. Ele queria aposentar-se, talvez, para dedicar-se ao sonho de um trabalho voluntário ou ainda escrever seus sonhos em cadernos de capa dura e colorida; Talvez cursos de espanhol, uma atividade de caminhada...ou curtir os netos que já queriam dar o ar da presença...
Mas como em todo conto, era uma vez um médico que apenas sonhava em descansar um pouco, nunca estar parado...E...
--Benvindo ao seu novo emprego. Aqui passará a maior parte do tempo...
--Que devo fazer?
--Apenas ouça. Há horas em que é melhor calar e saber ouvir...
--Isso eu fiz a vida toda!
--Não há porque não fazer agora.
E tinha salas e mais salas, um pessoal que chegava, novinho de tudo, querendo que ele explicasse umas coisas. Ele tinha de estudar de novo, afinal, já se passara um bom tempo!
Com renovada certeza lia nas madrugadas iluminadas de um sol rosado que ele pensava existir só nos contos de uma época já ultrapassada e antiga. Foi quando se olhou ao espelho: Viva, descobrira as fontes da Eternidade e da Juventude.
Espera aí, como é isso? Que história é essa? Se ele já não sentia os joelhos doerem, se havia um hospital novinho em folha, sem crise de falta de gente e material, se seu cabelo era farto de novo; e agora????
--E agora??? Disse o doutor de cabelos grisalhos.
--Vira de lado, querido, que você está sonhando de novo!
--Preciso lhe contar um sonho!
--Amanhã você me conta. Dorme que temos de pegar a Mari amanhã. Lembra? Ela adora suas histórias malucas! E amanhã não é o dia de sua visita ao hospital geral? Descanse.
Vida breve; longa a arte!!!* |