Jonas precisava desesperadamente de dinheiro. Sabe como é, viver de bicos não é exatamente a melhor das ocupações. Tinha de pagar o aluguel de seu quartinho e como sua locatária não era exatamente uma boa mulher russa ou uma piedosa velhinha viúva e rica dos séculos passados, ele andava com a cordinha ao pescoço.
--Eu pago, vou arranjar um dinheirinho e já volto.
--É pra hoje, seu Joninhas?
--Pode acreditar. Eu me garanto nessas e noutras paradas.
Ele desceu as ruas infestadas de cabaninhas drapejando seus plásticos pretos no vento ateu da cidade empedernida. Cachorros cagavam nos cantos e uns latiam pelos seus donos abandonados pelas autoridades, uns já mortos, outros detidos pela polícia. Deu de olhar as vagabundas, cada uma que via que dava dó. Misturava-se de tudo um pouco ao cheiro de bosta e de azedume, urina e suor dos viadutos acampados.
--Oi, garotão! Hoje, é pegar ou largar. Essa minha bunda vale o que pesa.
--Mais pesa que vale!
--Mas quando pesa, pesa e quando vale, ô se vale.
--Obrigado, Dorothy (ela era fã de Oz), mas hoje estou me guardando.
--Vai à missa?
--Não. Preciso de dinheiro. Vou ali e já volto!
A marafona o olhou de cima a baixo, experimentada nos segredos dos machinhos babacas que se acham o máximo e são especialistas em acordarem com as bocas lotadas de formigas; ela gostava dele...
--Jonas, nada de bobagem, viu?
--Eu prometo. O lance é garantido, é pá e tal. Moleza!
--Então vai. Ó, passa no Portuga e toma um pingado, está pago. Depois vem me contar suas histórias que me encantam.
--Te prometo! Obrigado! Tchau!
Ele foi em frente, passando por uma fauna variada de bichas, travestis e putinhas novas com línguas rubras, restos de comida nos cantos e bosta acumulada em árvores ressequidas com plásticos cheios de crack e maconha. Virou à esquerda e entrou no seu Portuga, o bar das multidões soçobradas.
--Óii quem vem, seu Joninhas! Que é que tu queres?
--Pingado, seu Jonas. E pão na chapa, canoa sem miolo.
--Não vai a primeirinha?
--Hoje não, tenho mais o que fazer. Sabe, lance de dinheiro, um breguete aí que eu preciso estar forte.
--Pois não, Jonas! Sai uma canoa pro jovem aqui e um pingado caprichado!
Lambeu os beiços o inquilino do quartinho Mofarrej, como ele o apelidara.
Lá se foi o gajo, à procura de seu destino. Virou uma esquina onde as putas se acumulavam como vespas numa escadaria pintada de vermelho e com uma grade de ferro cheia de bitucas de cigarro penduradas nos vãos do ferro degradado. Era perto, ele pensou, era perto. Um gato o encarou como uma onça e parou; talvez quisesse leite, talvez sua cria estivesse escondida sob os corpos que dormiam e fediam nos colchões mal espalhados nas calçadas.
Lá era o destino, ele viu porque tinha fila. Uma fila só de homens. Uns carregavam revistas, outros olhavam boiando o céu de poucos amigos, enfarruscado como sempre naquelas paragens escuras de tantas formosuras perdidas e de tanta sujeira acumulada. Passou um noiado perto dele, olhos faiscantes e pedindo comida e/ou dinheiro, não nessa ordem. Magro, pele e osso, olhos saltados nas cavas do rosto, macilento, mão enormes e pernas de saracura. Um espantalho que se equilibrava entre os carros de janelas fechadas e de donos indiferentes. Ele não tinha um puto. Mas deu para o esqueleto um pedaço de pão restante do portuga.
Entrou na fila. Bem à sua frente, um camarada vestia um jeans apertado demais na sua bunda. Devia ser incômodo, mas ele nem aí, lia avidamente uma revista de sacanagem que tinha Rita Cadillac dando entrevista e explicando como fora parar na sarjeta, ou ainda a tal de Anitta parecendo Michael Jackson, ou Ludmilla e sua bunda gorda. Ele não curtia nada disso, vivia escondido e lendo, lendo, lendo em seu muquifo. Fazia bicos, vez em quando um trabalhinho em lojas de quinta, mais ainda de vez em quando virava aviãozinho e por aí vai. Eclético o nosso herói das esquinas. Ele bebia e várias vezes caminhava só nas ruas empedradas de pó, crack, correrias e chumbo.
--Próoooooooooooooooooooximo!!!!!
A fila andou um bocado, porque o próximo valia por dois, grandão de coxas que entrou suarento na escuridão da escada mal iluminada. Ele já era o quinto da fila e não queria papo porque a cabeça lhe día, fruto de dias e dias de abstinência. Dias e dias! Sabe como é! Poderia também ser fome, ele era um esfomeado; que pobre não é esfomeado, gente? Que porra é essa? O cara da frente soltou um traque, deve comer atum porque a esquina se parecia com uma peixaria...
--Desculpem.
--Não há de quê. Eu comi um despacho de frango ao molho pardo. Me aguarde.
Desrespeito, oras!
--PRÓOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOXIMO!!!!!!!!
Lá se foi o pescador e sua baleia. Ele se ajuntou na porta, de onde vinha um cheiro de suor azedo e onde esvoaçavam rainhas de cupim no poste vizinho, enxameadas para o próximo ataque e os forros e batentes das portas de madeira apodrecida das casas desgrenhadas da rua sangrenta. Taí, eu bem que podia ser escritor, metido nessa gandaia de rua, cambaio de tudo, mal me sustendo de tanta dor de cabeça mas não: Estou aqui para ganhar uns trocados suados e honestos, sem dúvida, para pagar a locatária que hora destas deve estar preparando a gororoba que serve na mesa do refeitório.
--PRÓOOOOOOOOOXIMO!!!
O problema é que o grito foi tão alto que ele ficou surdo por um tempo; ele era o próximo.
--Seguinte: Sobe as escadas, vire à direita, pega uma revistinha e vai se animando que o negócio aqui é produção industrial. Vai vai, moleque, que não temos tempo, porra!
Ele catou a revista com a adorável Sandy na capa. Sua tara era aquela santarrona. Ela adorava uma coisa secreta que não vou falar aqui. Deixa pra lá, aqueles olhos de corça, aquela boca que soltava as notas como um passarinho cantor, ela era seu modelo.
Deram-lhe um frasco grande, entrou num cortinado, ou melhor, a tal negra vestida de branco, gordona, lhe empurrou para dentro onde sentou numa cadeira de metal pintada de branco iluminada de luz fraca e pendente do teto onde estavam as rainhas de cupim.
--Vamos lá, pessoal. Todo mundo imaginando, todo mundo fazendo força, vamos lá! São todos casadinhos de novo, estão na lua de mel num iate com a Marquezine, todos aí no bem bom...Marchem, babacas!
Ele abriu a revista, olhou os olhos de Sandy, ouviu-a cantando em seus ouvidos e a imaginou casando com ele e...encheu um frasco aliviado. Valera a pena abster-se a semana toda. Valera a pena. Saiu do cortinado e entregou o frasco semi-fumegante à enfermeira.
--Caraca! Quase meio litro!
--Pra vc ver.
--Parabénnnnns!!! Passa no guichê dez e pega tua grana. Te manda, malandro!
E ele pegou os trocados que valiam três meses de muquifo.
Saiu troncho.
Enveredou na noite.
Pagou a Locatária.
Entrou no quarto, pegou seu livro, trancou a porta.
Valera a pena.
Dormiu depois. |