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Cronicas-->"Para não dizer que não falei de flores" -- 18/03/2000 - 15:19 (André Duarte) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
(OBS.: Texto bucólico baseado em fatos reais em resposta às constantes críticas sobre o caráter melancólico, sombrio e de sarcasmo sobre a condição humana contido em meus humildes escritos.)

Penso distinguir em meio à grama pisoteada um punhado de pequenas flores de coloração exótica, talvez somente possíveis em um mundo de sonhos ou em momentàneos delírios. "São lindas", penso. Serão? Realmente elas parecem ser deslumbrantes, ao longe, sob a luminosidade púrpura do pór-do-sol; enquanto penas de milhares de frangos, como ainda possuídas pelas almas galináceas dos corpos aos quais há pouco pertenciam, são sopradas pela brisa e flutuam rentes ao asfalto como em revoada em fuga. As penas fogem do destino já ocorrido e confundem-se sobre que direção devem tomar ao cruzarem com o caminhão que traz, encaixotados, seus companheiros de infortúnio no abatedouro. Eu participo desta cena bucólica enquanto espero já durante trinta e cinco longos minutos pelo ónibus que me levará de volta para o centro da cidade. Da cidade na qual moro, é bom deixar claro, pois trabalho em outra cidade, que faz parte do que decidiu-se denominar "Região Metropolitana", o que causa algum tipo de ilusão de proximidade. A única coisa que faz amenizar o calor sufocante a me cercar e envolver é a brisa inconstante que traz a miscelànea odorífica do córrego próximo e dos restos galináceos incinerados no abatedouro. E eu penso, pois não há nada mais para fazer: "Já estou me acostumando. Há alguns meses, eu tinha ànsias de vómito quando sentia este cheiro".

O ónibus não chega e, pela demora, quando vier, já estará lotado. Eu irei em pé, se conseguir embarcar, espremido entre os que regressam suados do trabalho cotidiano e aqueles que se perfumam em demasia para assistirem ao próximo culto universal. Mas, enquanto o ónibus não vem, há tempo para admirar as flores desconhecidas cuja beleza e mistério incitam a curiosidade. Talvez elas transformem tudo num cenário agradável: lindas flores desabrocham, aves de belas plumagens e cantos graciosos, o refrescante córrego... Tudo perfeito.

E por falar em perfeição, essas lindas flores fazem crer que há pelo menos uma coisa digna de admiração neste mundo: pelo menos um punhado de flores belas de cor insólita cuja contemplação apaixonada faz com que tudo ao meu redor pareça compartilhar desta beleza. Flores pequenas, mas carregadas de uma beleza sublime e transbordante capaz de, sem egoísmo, contagiar tudo à sua volta.

Estou saindo de mais um exaustivo dia de trabalho, mas esta simples visão faz-me sentir revigorado. O cigarro que fumo neste momento tem outro sabor; a atmosfera carregada com os mais variados componentes fedegosos torna-se uma suave fragrància primaveril; a espera angustiante pelo ónibus faz-se plena de sentido. Logo ali, a menos de cinquenta metros de mim, há um ponto de perfeição, talvez o único, no meio de todo este universo esquecido por Deus. E há a curiosa sensação de estar sozinho, de ser o único a estar atento a este espetáculo. Sinto algo que me compele a me aproximar daquelas flores, a colher uma delas para presentear alguém que amo, levar uma dessas flores ao nariz e, abrindo bem as narinas, inspirar profundamente, como pretendendo roubar seu cheiro. Aliás, qual deve ser o cheiro de uma flor perfeita?

Da conjectura à decisão, da decisão à ação. Inicio o percurso barranco abaixo, novamente em direção à escola, a um canteiro especial que circunda um de seus prédios. As flores estão lá, cada vez mais próximas. O ónibus finalmente passa. Serão, talvez, mais quarenta e cinco minutos para que o próximo chegue e eu possa ir embora. Não me preocupo, nem me irrito. Estou pleno de um sentimento quase desconhecido por mim. Algo que talvez seja mais do que aquilo que as pessoas costumeiramente chamam pelo nome de "felicidade". Algo como se uma força transcendental insistisse com violência em tocar incidentalmente em minha cabeça a música "Besame mucho" orquestrada pelo Ray Connif e quisesse me fazer dançar sozinho enquanto desço o barranco lamacento.

As flores estão próximas. Posso encher meus olhos com esta visão desconcertante. Penso distinguir em meio à grama pisoteada um punhado de pequenas flores de coloração exótica, talvez somente possíveis em um mundo de sonhos ou em momentàneos delírios. Seriam lindas e teriam justificado tudo o que senti, teriam conferido um sentido, mesmo que suficiente apenas para um pequeno instante fugidio de minha vida, se fossem realmente flores; se não fossem somente manchas do flúor cuspido pelos alunos da escola após o programa de higiene bucal oferecido pela Prefeitura.
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