Ainda que se tenha de começar uma história, ela deve passar pelos subterfúgios de toda narrativa. Eis que aqui se somam os deveres de quem escreve com os traços de quem lê o que se descreve. Aqui faço uma pausa e penso se o que se descreve está mais perto do que é real ou tudo não passa de maquinação da realidade para fazer-se passar por história, o que ao final dá na mesma porque tudo não passa de mecanismos, tudo não deixa de ser uma enorme manipulação. A realidade não nos amesquinha em vão, ela sempre é maior que o tudo que imaginamos que somos. Podemos recriar um planeta, ele será sempre a sombra de uma sombra de um espelho e disso nunca passaremos. Os limites da mente são os limites do espírito, ou não?
Eu penso que o espírito é o limite de todas as coisas. Alguns dizem que mente e espírito se fundem e mais se confundem na medida que a realidade nos ata aos seus ditames. Por exemplo, o espírito deseja e almeja a libertação, mas a realidade nos mata a percepção e a mente nos chama com a fome, o medo, as regras da rotina e a vida não nos deixa voar mais alto; talvez seja esta a real causa do mal-estar que cerca nossas civilizações todas e talvez seja esta a raiz de todas as guerras.
Posso, claro, ter exagerado, alguns me acusam disto sempre: Exagerado, verborrágico, logorréico. Outros me acusam de ser falso e mentiroso; eu aceito ser falastrão, mas a realidade choca com os fatos e supera as ficções mais disparatadas. Alguém pode contestar? Eu duvido. As histórias não deixam de ser simulacros da História, essa grande vilã que comprova nossa superficialidade e nossa marcha para o caos e a finitude. Não passamos de vírgulas de um texto por mais que montado e tratado de um roteiro alinhavado algures por um autor desconhecido e afeito aos acasos e aos enigmas.
O destino humano é pensar sobre possíveis comandos quando na verdade não passa de uma cega obediência aos instintos mais baixos e aos mais desaforados indivíduos. Aqueles que realmente acham que pensam rapidamente se colocam em evidência turva e chegam às lideranças mentindo e trapaceando; uns criando a ilusão do bem-estar ( e chegam aos governos), outros a remissão pela fé ( e erguem os templos onde se enganam os homens), outros criam utopias ( e tentam redobrar a realidade que, como um parafuso, dá uma volta completa e lhes demonstra a imutabilidade).
Partindo desse ponto, enovelando a realidade a uma somatória de realidades que se impõem à força das leis sociais e econômicas, como poderíamos então, “inventar uma história”? Será que o que queremos inventar e tudo o que já foi inventado não passa de algo que está lá, pairando, à espera de sua descrição ou, de algum modo, não será algum tipo de situação pela qual nós já tenhamos passado de alguma forma e apenas o que fazemos é amplifica-la, criando uma ponte sobre o abismo de nossa ignorância?
Creio que não. Absolutamente, acredito que quem escreve de certa forma influencia e sofre influência de quem lê. Acredito num ponto de vista quântico que diz que o Observador de certa forma interfere no Objeto, pelo menos naquilo que se trata de minúsculas dimensões (o Universo das pequenas partículas que nos compõem). Se se pode interferir no mínimo campo, não sofrerá o Universo todo quando Anna Karenina se joga sob o trem em movimento, movida a desespero tão grande que a faz desprezar os milhares de possibilidades que a vida ainda lhe ofereceria? O que gerou tanto desespero em Anna? Foi o fato de ser casada com um crápula e ter cedido a um outro crápula sua maravilhosa beleza?
Realidades se superpondo...Partículas vibrando em uníssono...A tristeza de uma tarde onde a chuva cai sem parar. Quanto mais a chuva cai, mais me convenço das iniquidades da vida, tendo tantas águas aqui quanto não há em algures, onde o ar se torna espesso, onde as ramagens olham um céu inclemente e onde os poços, as covas, os buracos, as represas, todos são de uma poeira sem limites. Lá apesar de tudo, ainda se vive. E aqui, se remói a inutilidade do imobilismo, sob a água pardacenta que cai ritmadamente, sem paradeiro da mesma forma que lá o sol cresta, queima, redesenha e mata a natureza sedenta e empobrecida. E se eu pudesse pensar que aqui, Anna não houvesse se matado e sua recusa à não-existência se refletisse lá, onde as nuvens secas de pó de repente reverberassem um ronco contínuo, inicialmente surdo, que se tornasse maior e mais espesso, trazendo um vento que resfriasse as patas dos lagartos e agitasse as folhas secas das mangueiras e os espinhos dos mandacarus, numa lufada levantando um remoinho de folhagem ressequida? Repentinamente, Anna diria: “Não!” e voltaria para sua casa, e esperaria pela correspondência que lhe daria a certeza da vinda de seu amado e as nuvens se adensariam no terreno cheio de ossadas de Januária, que veria o céu se refazer em clarões?
--Será que dessa vez cai água?
Anna saberia se sim, ou se não. |