Kormonsk, uma cidadezinha russa à beira do Volga, cuja atividade principal é a madeireira, é fria para o diabo. Nem Deus chega perto, por medo de passar frio no inverno. Aliás, o frio é tão grande que meus dedos gelam, só de descrever os fatos. Os seus habitantes são todos fortes, robustos e matreiros; adoram beber e conversar nas horas de folga de seu trabalho pesado. Kukútchov é um lenhador atarracado, típico russo, de cabelos escuros e olhos claros, sardento e de gênio terrível. Diz-se dele que, certa vez, em uma partida de tuíste, arrancou um dedo de outro por simples raiva. É ele que começa a falar, depois de bebericar um copo inteiro.
--Vocês são todos uns frouxos, camaradas.
O vozerio que se segue é ensurdecedor, porque nem todos concordam com o que Kukútchov diz. Marmáladov inclusive faz um sinal feio e o outro lhe dá uma banana.
--Fale por si, Kuku. Eu não sou trouxa.
--Frouxo, Marmaládov. Vejam: Cortou tanta lenha que já não ouve seus peidos.
--Hahahahahahahahha!!!
Todos gargalham e Marmaládov fecha o cenho, contrariado. Kagánov, o madeireiro, acena que sim com a cabeça, sua barba quase tocando seu peito. Alto, cabelos sempre desalinhados, ele cumprimenta Kukútchov pela ousadia de dizer o que todos pensam mas que quase ninguém tem coragem de falar, quanto mais de dizer em público. Isso não quer dizer que os outros isentavam Kuku de sua culpa; não, absolutamente. O fogo crepitava na lareira, alguns jogavam pedaços de carvão só para ver as faíscas subirem ao ar. O atarracado lenhador voltou à carga.
--Pois sim! O Governo agora diz que só podemos uma vez por ano exercer nosso sagrado direito de sermos respeitados no lar.
--Bravo! Bravo! Respeito, isso é o que queremos!
--Não temos pão; queremos pelo menos respeito!
Lá ao fundo da taverna, um jovem contempla a cena com ar leve, os olhos azuis certas vezes olhando para os lados, algumas vezes sorridentes, na maior parte das vezes desinteressados...Como se aquilo tudo não fosse de importància alguma. Alguns jovens pensam que serão eternos; veja-se o caso de Kúmtchov que desafiara a morte num mergulho no Volga do qual jamais voltara. O jovem parecia não pertencer ao local embora não abandonasse a discussão.
Marmaládov refaz o sinal feio e Kukútchov reage.
--Frouxo!
--Frouxo é você; todo mundo sabe quem manda em sua Isbá.
Vozerio e algaravia. Uns punhos se levantam, outros esmurram as mesas. Um mais sereno, Ziembinsky, propõe uma trégua.
--Calma, calma! Todos estamos revoltados. Sabemos de nossos direitos inalienáveis. Afinal, temos de mandar em alguém.
--As bruxas devem estar fazendo uma convenção. Elas devem estar mexendo em seus caldeirões, agora, pois que nunca poderemos levantar as mãos contra elas.
--Todas deveriam arder no óleo fervente, afinal!
--Kagánov! E quem cozinharia para nós? Quem levaria nossas crianças à escola e lhes lavaria os corpos, e faria nosso jantar e traria os chinelos para nossos tapetes? Quem esquentaria os samovares para as visitas?
--Verdade!! Verdade!
--No entanto, que elas sejam bruxas, há controvérsias também. Que nos enfeiticem, isso está certo!
--Minha mulher é uma babuchka sim. Ela, imaginem, ela entrou em conluio com minha sogra e as duas, imaginem, as duas ( contrai os maxilares e os olhos brilham de ódio), ficam mexericando enquanto bebo minha vodka. Dizem que sou um inútil. Eu, que trabalho de sol a sol, carregando o madeirame todo para os caminhões dos patrões! Eu! Inútil! Babuchkas!
--Isso não justifica que sejam agredidas!
--Verdade!!! Verdade!!!!!!
--Mas Marmaládov! Camarada Marmaládov! Só exerceremos nosso direito uma vez, eu digo, uma vez por ano! Só uma vez! Daí sim as bruxas tomarão o poder de nós que trabalhamos...
Vozerio. Algaravia! Mais murros na mesa, revolta, um copo quebrado no chão e um outro mais revoltado. Nisso, todos se voltam ao jovem que, quieto em seu canto, contempla a discussão com a leveza dos apaixonados. Dir-se-ia que acabara de casar-se: A melhor parte ainda não chegara, quando os apaixonados se descobrem em mil e uma noites e mais mil e um dias de felicidades extremadas. Zuhgánov assim estava, entre um copo e outro, sorrindo com a confusão instaurada pelo decreto de Putin há cerca de um ano atrás. Os russos são assim: Discutem por anos o que deveriam fazer em minutos, e quando o fazem, sempre o fazem com envolvimento e paixão.
--Camarada Zughánov! Estamos aqui nesta discussão toda, sabendo que o que queremos é apenas exercer o direito de mandar em nossos lares sagrados. O que você tem a dizer disso?
--É mesmo! Fica aí, benendo à s nossas custas enquanto gastamos nossos copeques ganhos com tanto esforço e você aí, sentado, rindo de tudo e todos!
--Verdade!!!!! Verdade!!!!!!!!!!!!!!!!!!
--Qual é seu segredo?
Zughánov beberica seu copo, olha o fogo crepitando, as fagulhas fazendo figuras fantásticas no teto chamuscado, o samovar já fervendo e apitando levemente feito uma locomotiva ao longe na ferrovia. Irónico, ele pigarreia e diz, como se não fosse nada:
--É que hoje é o dia!!
[Um mundo em que o homem ergue os muros, outros exercem o feminicídio, mais alguns estupram e se vangloriam como deuses, mais outros desprezam as mulheres como seres inferiores e as ocultam como demónios, definitivamente está errado].