A Vida supera a ficção. Sempre. Eu moro num apartamento desses de gente boa, família mesmo. Tenho bons vizinhos, exceto...Os de cima. Volta e meia, gritaria e zona total. Outro dia fizeram reparos em nosso encanamento, isto é, do prédio todo; tiveram de abrir a coluna que passava pelo banheiro da área de serviço (odeio esse negócio de "banheiro de empregada" porque me parece que é elitista pra cacete e outra coisa, uso muito quando quero reserva e meditação nada transcendental). Pois bem, os do andar de cima fumavam tanta erva, mas tanta erva, que entonteci cá embaixo. Dei pra pensar maluquice sentado no trono, vejam a quantidade de Cannabis que flutuava no ar da área de serviço.
--Que cheiro é esse?
--Não fui eu. Bleb!
Maconha pura, da gema. Silêncio total no ervódromo. Eu queria ser uma mosca para saber o que acontecia lá. Tinham um cachorro desses gigantes e volta e meia os malucos deixavam o bicho uivando, talvez de fome, talvez malucaço também. Tem doido pra tudo neste mundão grande! Pintavam e bordavam no cafofo.
A outra deles foi invejável, porque o prédio se encheu de vozes alegres e estridentes de moças que pareciam saídas de uma festa de despedida de solteiro. Uma delas, eu vi no elevador, tinha um pompom sabe aonde? Pois é, meninos, eu vi!
--Que é isso?
--São moleques, ora.
--Que você está olhando?
Eu? Nada disso. O pompom era rosa e os lábios dela carnudos, com aquele sorriso irónico que as moças de vida nada fácil adotam profissional e publicamente; Oras!
O pior viria depois: Uma gritaria, uma das moças gritando "socorro" pela janela quase pegada ao local de minha alucinação escatológica. Tinha gente transando em todos os cómodos: Uma beleza.
Dias depois, ouvimos um som contínuo, um disco de rock psicodélico que entrava, terminava e voltava. Ligamos ao síndico, ao porteiro, ao diabo que o carregue: "Já ligamos, ninguém atende".
--Ah, é? Vou lá agora!
--Não faça isso, seu louco!
--Quer ver se não vou? São quarenta e oito horas de música! Pior, de um conjunto peba! Se mudassem ou diminuíssem o volume, tudo bem! Mas...
Lá fui eu, vocês pensam que não? Sou pequetito pero cumplidor!! Toquei a campainha e nada, nada....Ninguém. Bati na porta com força...e ela estava aberta! Aberta, pra todo mundo ver, vejam: Está aberta.
Vai que tem algum morto lá? Senti o cheiro de fora: Não havia um morto lá dentro, definitivamente. Talvez o cachorro, mas fazia tempo que ele silenciara(morrera??) . A porra do disquinho tocava, entrei na cozinha: Copos em toda parte, louça suja e eu perguntando: Olá!!!! Existe alguém em casa??? Podem abaixar esta música? Dois dias!!!!
Ninguém.
Fui até a sala: Roupas reviradas, maletas, entulhos, papéis e tralhas, cortina fechada, cheiro de mofo e erva. Ninguém. A vitrolinha, num desafio, voltou a tocar...A mesma música de sempre. Olhei de um lado a outro, confusão, roupas jogadas...
Confesso que dei um fim à música. Tirei da tomada nosso instrumento maligno do desassossego. Fiz o que ninguém faria, mas fiz.
O silêncio me deu coragem: Cadê o cachorro?
Ninguém.
Fechei a porta, aliviado e avisei à portaria o que havia visto lá dentro.
Ninguém chamou a polícia.
Alguns dias depois, trouxeram o caminhão da mudança.
Devia ter feito uma festa; meu centro de meditação nunca mais me deixaria tonto.