Usina de Letras
Usina de Letras
71 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 


Artigos ( 62823 )
Cartas ( 21344)
Contos (13289)
Cordel (10347)
Crônicas (22569)
Discursos (3245)
Ensaios - (10542)
Erótico (13586)
Frases (51217)
Humor (20118)
Infantil (5545)
Infanto Juvenil (4875)
Letras de Música (5465)
Peça de Teatro (1380)
Poesias (141100)
Redação (3342)
Roteiro de Filme ou Novela (1065)
Teses / Monologos (2440)
Textos Jurídicos (1965)
Textos Religiosos/Sermões (6301)

 

LEGENDAS
( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )
( ! )- Texto com Comentários

 

Nossa Proposta
Nota Legal
Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Cronicas-->Maria do Rosário -- 06/08/2017 - 20:38 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Não sei como começar, porque parece que a história nunca termina; isso mesmo, eu já vi e ouvi tantas coisas que mais uma não me surpreende. Qual! A realidade tem em si melhores ficções, engendra em seu rascunho mais provisões do que poderíamos imaginar. O cético não encontra senão sinais que o fazem aceitar alguma crença? O crédulo não suporta as sevícias do mundo e acaba abalado em sua fé inamovível? Tudo pode mudar, absolutamente tudo, até minha certeza de que o mundo não girou sobre si mesmo cinco vezes antes de se tornar o que é hoje, quando então as estrelas que habitavam os céus estavam em outras posições. Pssst, isso é um segredo que os ocultistas em vão tentam esconder e que os antigos povos transformaram em símbolos para nós indecifráveis.
Não importa, se você é crédulo ou cético, místico ou centrado, siga minha narrativa.
Eu atendo em um posto de saúde numa cidade do interior e já há uma semana havia recebido de presente um cristal que talvez não tivesse assim tanta nobreza. Pelo visto, tenho uma fonte inesgotável de histórias que poderiam acontecer com qualquer um de nós; por que não comigo?
Eu ia lá pelo final de meus atendimentos quando dou por conta que ainda havia uma senhora para ser vista; não é que seu prontuário se enfiara entre outros como se vivo fosse? Pude ver que ela era sofrida como milhões de nós. Carregava na face os sinais da miséria que açoita nosso povo sem dó nem piedade. Os olhos, fixos e mortiços, a boca murcha, mal alinhavada por uma dentadura que não lhe caia direito, o rosto cheio de pequenos buracos e descorado pela anemia, as bochechas que caem com a falta de perspectiva...Mal vestida, eu me espantava como não sentia frio, com uma saia mal-ajambrada de flores que tendiam ao azul e uma blusinha fina que cobria seus ombros magros e chegava quase aos seus punhos.
--Bom dia!
--Bom dia, doutor.
--Como é seu nome?
--Maria do Rosário.
--Conte-me um pouco sobre sua vida.
--Seu moço, minha vida é curta, se eu contar, talvez não viva mais do que ela me deu. Eu tenho meus anos vividos, e como são muitos, já não tenho muito mais o que viver. Só peço a Deus que cumpra suas promessas porque eu já cumpri as minhas, graças a Deus.
--Em que posso ajudar a senhora, dona Maria?
--Olhe, eu já tive meus filhos. Foram uns três antes de...
Ela hesitou por um instante. Via-se que formulava pensamentos difíceis que talvez não encontrassem brecha em sua consciência turvada pelos anos de sofrimento e iniquidade. Os sofrimentos encobrem nossas mais caras vontades, ensombrecem nossas mais lindas ilusões e desviam os rios de nossas mais alegres lembranças. Finalmente, despojada da vergonha de dizer o que lhe ia na cabeça, soltou-se:
--Meu marido era uma peste. Nunca ajudava em casa. Não dava nada e eu tinha de me virar. Eu trabalhava, o monstrengo bebia; trabalhava um pouco aqui, um pouco lá; perdia os empregos porque ninguém quer pinguço na fábrica e em lugar nenhum. Ele bebia mesmo, cheirava cachaça quando chegava e os filhos sofriam em sua mão pesada. Dizia que era para que eles não seguissem o caminho dele, e tome tabefe. Eu ia defender os pobrezinhos e levava tapa. Um inferno, seu doutor.
--Um alcoólatra é sempre violento, ainda mais com a família.
--...Pois é. Os coitadinhos não comiam direito, mal sobreviviam e eu, para dar conta, trabalhava para fora. Perdi um de diarreia, o outro morreu de virose e o terceiro sumiu no mundo para nunca mais eu ver.
--E esse marido? Que foi feito dele?
--Ara, que ele me fez de gato e sapato. Mas o dele estava guardado. Uma noite resolveu me bater dizendo que eu era culpada de os filhos terem morrido. Quase me matou. Chamei a polícia e prenderam o danado.
--Ele ainda vive?
--Não, seu doutor. Morreu numa rebelião, queimado num colchão.
A gente estremece, não?
--Pois é, seu doutor. Só que eu assim que me separei dele fui me enrolar com um camarada que veio dizendo aquelas coisas que todos dizem, que eu era a mulher da vida dele, que eu era formosa, bonita e que tais. Que mulher, mesmo uma como eu, não cai na lábia desses felinos? Fui pra cama com ele...E há uns vinte e poucos anos fiquei grávida de um menino. O camarada? Sumiu no mundo, o covarde, de modo que eu, eu eduquei ele, vi ele crescer, vi ele engrossar as pernas, ganhar sustança, dei leite do peito como as moças do posto me ensinaram, fui nas reuniões de escola, me matei pra pagar o material, fiz ele ler e escrever...Ele começou a ficar com a voz grossa e os cabelos loiros do pai fujão, as meninas se enrabichavam dele, ele era temido por ser brigão e forte, era odiado por ser estudioso, era invejado porque não ia pelo caminho mais fácil...
--Ele está com você?
Aqueles ombros magros caem como se atingidos por um peso enorme, os ossos se tornam secos, o olhar se torna enfermiço e o brilho deles dá uma ideia do que foi que marcara sua alma de maneira indelével.
--...Então, dona Maria?
--...Não, ele não está mais comigo. Pois eu não lhe disse que era temido, era odiado, era invejado, era uma beleza de menino, um primor comigo, um grande companheiro? Logo que puderam, os seus inimigos armaram emboscada e meu menino se foi com a beleza de anjo e tantas promessas que lhe iam nas mãos que eu havia lido...Só não tinha visto que duraria tão pouco em minhas mãos.
--Que terrível, dona Maria...sinta-se confortada, estamos aqui para ajudar...
--Veja o senhor, ele não está mais comigo em corpo, ele repousa ali num jazigo, mas conversa sempre comigo de noite; eu oro, ele aparece e vem me confortar em minha solidão ou quando estou com frio, ele me traz um cobertor de amor. Vivo eu e mais um cachorro, que eu adotei depois que meu menino se foi, para se juntar aos seus irmãos lá do alto. Digo a quem quer que seja que um dia, ele há de nascer de novo, para me ajudar a enfrentar este mundo de Deus em que o diabo faz diabruras. Está vendo aqui minha barriga?
Ela tinha um ventre meio proeminente, talvez crescido de vermes, talvez conformado de gases. Ela tinha a certeza de que seu filho ainda a habitava e se não era um sinal que ali se instalava, pelo menos ele se mexia ainda dentro dela e um dia, haveria de descer ao mundo o que tão cedo se fora da Terra.
Eu a olhei nos olhos; sabia que era um delírio. Sabia que ela o esperava, que um dia talvez a realidade a oprimisse tanto que ela não suportaria mais viver. Para viver ainda o que lhe restava, inventara uma ilusão que tomava forma quando sua barriga se mexia.
--Preciso de uma cirurgia, seu doutor, pra livrar meu filho de tanta espera. Uma cirurgia que o tire de dentro de mim e que o traga de novo aos meus braços...
Quando saiu, munida de receita, pedidos de exame e meu olhar triste, agradeceu de coração o que eu lhe prometera. Nada que eu não pudesse fazer, pois ela já tinha seus cinquenta e seis anos.
Eu lhe prometera ouvir sempre que pudesse, sempre que quisesse conversar; lá ia mais uma Maria do mundo, mais uma Maria sofrida e desvalida, Maria que não esquecia do caminho, nem da verdade, nem da vida.
Eu saí à rua para a ver andando: Não havia Maria nenhuma lá, apenas nuvens.
Desconfio que ela nunca deixará de me ver.
Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Perfil do AutorSeguidores: 4Exibido 394 vezesFale com o autor