Disse o dissimulado e frio médico ao paciente mentiroso e calculista do outro lado do leito, de pé, com a prancheta nas mãos enquanto palitava um dente sujo de alface do almoço meia-boca que ele comera no restaurante sujo e feio do hospital pobre e mal-amparado pelo governo mudo e calado daquele país burro e mal-falado:
--O senhor quer que eu diga a notícia boa ou a notícia ruim primeiro?
--Quero a ruim primeiro, seu dissimulado e frio calculista e mercantilista.
--Sua filha perdeu um filho.
--Ohh não! Ela sonhava tanto!!! E a boa notícia?
--Ela tinha outros três.
--O quê????
--Sim. Todos saudáveis. Graças aos céus.
Calculadamente palitando os dentes, o frio e dissimulado médico, açougueiro notório de trabalhar em bibocas de quinta, não pode reprimir a felicidade de dar tanta felicidade ao velho casal ranheta...
Calculadamente dissimulado, o médico frio e calculista calcula frio sua planilha de atendimentos e mal disfarça o júbilo quando vê que atenderá Maria, dona Duarte e seu Ermírio, pacientemente esperando na sala mal-alinhavada do ambulatório onde ele atende no seu quinto emprego mal-pago.
Disfarçadamente o calculista frio e mal-apessoado porque nem tomar banho consegue, sente uma dor, mal-estar no peito magro de tanto trabalho desfeito e tanta gente que ajudou a salvar; como um elefante mal-afeito, ele se esconde no consultório frio e dissimulado, faz o sinal da cruz e morre sozinho, sem jeito, cansado, triste de ser abandonado por tantos e por tão pouco.
Lá fora, uma turba espera o frio corpo abandonado, flutuando na maca solitária do consultório abandonado por sua alma. Gritos se ouvem, urros...
--Vai atender não?
--Uuuuuuuuuuuuuuu, queremos doutor, queremos doutor...!!
--Eles ficam lá, tomando café e contando dinheirinho.
--Todos uns babacas. Milionários, filhosdaputa!
--Uuuuuuuuuuuu, frio, calculistaaaa!!!!
O Doutor está em outra; ele dorme a sono solto, eterno e leve, seguro e sem sonhos.
Quando ele abre os olhos, está sentado em sua mesa, com pilhas de fichas e o famoso barulhinho de mais uma na caixinha de madeira velha e engordurada.
--Pléc!
Aturdido, porque morto, ele não acredita no que vê. Porra! Sai da sala e vai em direção ao que acha responsável; este ao vê-lo, estende os braços.
--Olá, frio e dissimulado! Venha cá, tem cafezinho novo e um biscoitinho bom para você.
--Que é isso?
--Você não foi frio, dissimulado, calculista e médico?
--Fui médico.
--Ah, bom. Tem trinta e três pacientes esperando. Vai que é tua, Juvenal.
--Sem parada?
--Sem parada. Só para o xixi. Vai! Deixa de ser simulador, Doutor, que aqui a parada é mais embaixo!
E apontou o dedo nodoso para a porta do consultório aberta