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Cronicas-->O Garimpo -- 21/09/2017 - 10:12 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O menino com cara de estudante de humanas entra com aquele jeito meio acanhado de quem quer confessar o inconfessável, algo como talvez uma predileção escusa ou mais ainda, uma crença política meio fora de moda. Balança os cabelos de lado, dono de juba de respeito e óculos idem que lhe dão ar de intelectual devorador de idéias e livros. Carrega nas mãos um texto enorme e xerocado, talvez sua tese ou a leitura de que se ocupa, barateada por estes milagres da tecnologia. O livro já era, meus amigos, o sabor o e cheiro das capas evaporou, tem agora o texto na nuvem; nunca Maiakovsky esteve tão presente, ele que era uma nuvem de calças! Hoje, saímos de casa e entramos na nuvem, com ou sem calças, e compartilhamos tudo. Absolutamente tudo, não há segredo e nem intimidade e nem direito autoral, valha-me Deus!
Senta-se à cadeira, acanhado e com ar ensimesmado de quem quer escolher bem as palavras.
--Pois não?
--Eu...É que...
--Sinta-se à vontade.
--Ah, mas é que...É coisa minha, sabe...
--...Como o quê, por exemplo?
--Tem a ver com proporções, sabe? O senhor conhece as proporções do artista? Sabe aquela figura do Da Vinci, que dá as relações do homem com seu corpo?
--Conheço, a figura que foi ao espaço para dar saudações aos possíveis alienígenas...
--...Então, aquela figura...
--O senhor está com algum problema artístico? Tem algum problema de visão , é isso?
--...Veja, não é bem assim, é que...
--Tem alguma coisa que lhe incomode?
Ele olha de lado, como se houvesse algum sistema de escuta, sabe como é; tem tanta gente gravando depoimentos, falas, malas de dinheiro escondidas, microfones, chaveiros que espiam, telefones que registram secretamente, canetas espiãs, càmeras de segurança...
--O senhor está bem? Até agora, não disse por quê veio...
--O senhor já teve, assim, algum tipo de ...
--Aqui, não se discute o que eu possa ter. Afinal, eu sou o médico aqui. Em quê posso ajudar?
--Pois é, as proporções...
--Davi, Da Vinci, o quadro, sei sei.
--O senhor tem pressa?
--O tempo ruge!
--Urge?
--Que seja, urge, ruge. Mas passa, meu amigo. Passa!
--...Está bem, como vou dizer...
O silêncio diz algo que nem a maior das gritarias consegue exprimir. O olhar do estudioso se concentra num ponto da escrivaninha que, se condensado, poderia ter e abarcar toda a sisudez do mundo, tal é a quantidade de informações que ele coloca naquele nó da madeira.
--...Então?
--...Então. Sabe, eu cresci bastante...
--Vê-se!
--Doutor...Eu...eu...
--Prossiga...
--Eu...
--...
--Eu cresci, mas algo não acompanhou. Eu ganhei em carnes e espírito, tenho muita fome de saber, doutor, mas...
--...Mas?
--Bom, o fim do mundo está aí, Nibiru está chegando, vamos todos morrer...
--Bobagens, menino, bobagens! Crendices milenaristas, falta do que fazer...
--Tenho algo que não me acompanhou. Queria ver se tem jeito de resolver.
--As tais proporções?
--Sim, se é que me entende...
--Ah, sim! Então é isso!
--Isso! O senhor me entende?
--Perfeitamente, não nasci ontem...
--Que faço?
--Isso lhe incomoda?
--Muito. Sinto-me um Davi, sabe, a estátua, a escultura divinal de Michelàngelo?
--Sei.
--Que posso fazer?
Eu sempre digo, muitas vezes cresce o corpo mas o espírito não acompanha e tem-se então um ogro; noutras vezes o corpo padece e apesar da mirrada figura, tem-se a expressão de toda a candura, a alma pura em tempo nobre, Madre Teresa que me escute. No caso em questão, cresceu a alma, cresceram os pelos sem a correspondente estrutura das partes. No caso do estudioso, o micro continua micro, apesar do macro. Entendem? Não? Eu apenas, neste caso, pude tentar lhe dizer que nem tudo o que reluz é ouro, apesar de que em seu caso complexo, ele teria de agir como um garimpeiro, usando lupa e pinça.
--Estamos conversados?
--Massa! Agora sim!
--Sem grilo?
--O senhor me aliviou.
--Então.
E lá vai o intelecto perfeito, ocupado em flutuar, sabendo que outros há que pulsam de cama em cama sem saberem que existe um pretérito mais que perfeito e um futuro além de Nibiru.
Bom dia!
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