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Cronicas-->Dona Gita -- 02/11/2017 - 20:06 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Dona Gita, campesina, masca um naco de fumo de corda, costurando uma camisa de seu João, Nhó para ela. Ela masca o naco de fumo e costura, pacientemente, a camisa que Nhó usa para suas idas ao campo onde faz brotar as verduras que os alimentam e mitiga a sede do pouco gado que lhes sobrou. O calor é insuportável. Várias reses morreram ou foram comidas por jacarés extraviados da lagoa vizinha, onde se retorcem medonhos num silvo infernal de vizinhança com o tinhoso. Tem até uns cientistas que têm tentado salvar alguns, mas eles se suicidam comendo-se uns aos outros. Dona Gita tem pesadelos com o sobrante dessa visão do Abismo, quando ele resolver procurar comida fora da pocilga imunda.
--Nhó, será que a seca não termina mais não?
--Não se avexe não, que cavei um poço que vai nos dar água até o fim dos tempos.
--E esse poço é perto da lagoa dos bicharocos?
--...Longe. Dona Gita, já lhe disse, eu sei das coisas.
--Sabe mesmo?
--...E não sei?
Seu João gosta de fazer esculturas com a madeira que ele encontra nos grotões, tocos de arvorezinhas ressequidas que morreram faz tempo ou foram requeimadas pelos matutos que preferem arrasar a terra a passar um roçado. Ele sabe de tudo um pouco, de matuto não tem nada. De suas mãos nascem pequenos barquinhos que ele tira da memória de quando marujava, jogando a rede para subir o pescado que vendia nas ruas da capital; depois que os filhos cresceram e se foram, ele e dona Gita resolveram morar onde os pais dela tinham um canto...E daí se foram, para nunca mais voltar.
Mascando o pedaço de fumo, dona Gita continua a inquirição.
--Sabe mesmo de tudo, Nhó?
--Sei.
--Então. Como é que se explica que cada dia fica mais quente? Num dia está assim, no outro, mais um tanto. As bichinhas vivem dentro do curral, de medo de se assarem. Os bezerrinhos choram de fome e elas ainda têm leite ralo, mas com a seca... Eu ouço pelo rádio que nas capitais a coisa anda assim, de igual para pior. Ouvi aqui, no rádio, que lá na capital onde você pescava, os barcos saem e de tão longe que vão, não voltam. Se voltam, os marujos estão com pouco peixe, que foge das águas quentes.
--Ah, é?
--É, Nhó. Se você ainda fosse pescador, como é que ia alimentar nossos filhos?
--Eu ia fazer chover peixe, mas ia!
--Nhó, ia não.
--Mas eu não fui achar água lá onde só tem areia seca?
--...Então. Lá no sul, diz que as tempestade são tão fortes que o mar já levou muita gente da costa. Ninguém chega nem sai dos portos. Muita gente vai embora com medo das ondas e das ventanias...E que é isso então?
--O miserável homem comendo a Natureza pelas beiradas, Gita. Vai lá, corta um tronco, desmata uma tanto, queima floresta...Ela dá de volta.
--Natureza, Nhó? Nas cidades lá do Sudeste, o rádio diz que ninguém suporta o cheiro dos rios fedorentos de tanta sustança ruim que cai dentro. O lodo que sai é podre, sem vida e venenoso... E diz que tem bicho que nasce com três cabeças...
--Eu cortava todas, ah se cortava!
--Nascem mais três, Nhó! Isso, para mim, é coisa do Demo...Ou tem alguém interessado em destruir é tudo para conquistar de volta o que foi nosso.
--Como assim? Quem quer conquistar o quê, dona Gita? É a sede que lhe está deixando assim? Tome água, que essa é das boas.
--Onde mesmo você achou, seu João?
--Ah, não conto é não.
Dona Gita olha seu Nhó com aqueles olhos de quem já viu de tudo um pouco, desde seus filhos tenros até o Jacaré gigante que sai de bocarra aberta para devorar suas últimas reses. Algo em Nhó lembra um lagarto, talvez a pele dele meio escamosa de tanto sal e sol, talvez o jeito dele olhar enviesado. Ela o olha e não reconhece nele o Nhó que voltava do mar cheio de peixes e fazia a alegria de seus meninos com o fósforo dentro da boca, imitando um fantasma. Não, esse Nhó era misterioso, sai de noite para pegar água sabe-se lá onde, voltava tarde carregado de garrafões que levava vazios...Mistério.
--João, meu João...
--Sim, dona Gita?
--Eu sei de onde você tira a água que traz.
Seu João para a escultura minúscula que fazia com lento e demorado prazer. Será que a velha maluca o seguira até o grotão? Aquele amontoado de rugas pensava então? Será que desconfiara de alguma coisa e iria dar com a língua nos dentes? Seu sangue frio tinha limites.
--É pois. Vou dar uma olhada nas ferramentas, acho que preciso de uma que devo ter perdido e deve estar por lá.
--Vá lá, vá lá, que vou preparar nossa janta.
--Isso, vá lá e prepare.
Ele sai da casa batida pelo vento árido que zune na chapada. Os bois mugem de sede, ele deve dar água. Têm a carne boa de dentar, esses bichos estranhos. Ele já se acostumou ao sangue quente que sai ao primeiro corte. Está pegando gosto pela coisa e isto o alarma mais que a desconfiança da velhota que o acompanha estes anos todos desde a pescaria. Ele entra na casinhola de ferramentas, abre a porta escondida.
--A velhota descobriu tudo!
--Eu lhe disse, imprudente!
--Mas a carne é boa!
--Não sabe esperar, fica dando bandeira.
--Mas!
--Não tem mas; temos um projeto de poder. Não tem mas, tem de ser agora. Não pode correr o risco de ser descoberto.
--Crueldade. Ela se ajeita comigo, eu me ajeito com ela.
--Você esquece do Plano Maior? Ousa?
--Sim senhor.
Sai da casinha desanimado, o sangue gelado nas veias e o sabor do último naco ainda entre os dentes que esconde de Gita na boca que mais parece a boca do grande réptil que se agita dentro dele.
Lá dentro, Gita tece a camisa que ele usa para sair ao campo para pegar as verduras que os alimentam, mascando o fumo de corda.
--Eles já sabem de tudo!
--Eu sei, Nhó, que eles sabem de tudo. Eu sei também que o Grande Plano já começo faz um tempo; assente-se aí e coma a carne que eu assei; sei que gosta.
E os dois fazem a refeição que nem o Crocodilo da lagoa imaginava, enquanto sai lentamente da luta que o fez virar sobrevivente.
Ele também tem um Plano.
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