Sabem, eu vou contar a história de um caminhante que conheci. Ele tinha a capacidade de caminhar muito e, vez em quando, parava nas cidades por onde passava; deu de passar aqui, tinha uns acertos a fazer, desceu dos ombros as tralhas e desatou os nós das cordas que pendiam da cintura. Do cinto pendia um facão, um cantil grande, uma bolsa de trocados.
Nos pés, os sapatos cansados de tantas andanças, solados gastos, couro bom e curtido. As meias eram cobertas de pós das paragens mais estranhas: Tibete, Orinoco, Titicaca, Mandchúria, Ganges. Seus pés sabiam de tudo e sua cabeça vagueava nas nuvens solares.
Camisa que se repetia semana sim, outra também, até que mais uma saía da mochila e vai que virava sua segunda pele exausta. Xadrez uma, verde oliva a outra. Olhos de monte acima, óculos de grau largos, cabeleira fina, moída pelos extremos de clima, friacas e calorões torrenciais; não há cabelo que não leve amostras de solos mais estranhos do que os dele.
Depositou tudo no chão. Tirou as roupas, o curso do rio gelado estava bem ali, onde ele sabia que vinham elas de glaciares, tremendamente frias, cristalinas de pureza e onipotência divina.
Entrou o nosso viajante, que conheci um dia, num longo mergulho de águas claras e frias no deserto das palavras; ele disse que aquilo o revelava a si mesmo, muito embora levasse sais, palavras poucas que aprendera de idiomas raros ( e que anotava em um pequeno livreto de capa de couro).
Depois do mergulho, vinha o renovo, o respiro. Ele se levantava do rio como um batizado se levanta depois do mergulho no Sião.
Ele me disse: Nunca resguarde a luz, sempre caminhe com ela.
Espalhe.
E lá foi, viajante de águas profundas, deixando o rastro da caminhada, plec plec plec, passo firme, uma trilha na beirada do mundo.