Não posso dizer que os ruídos me incomodam; fazem parte do ambiente em que estou inserido e não posso responsabilizá-los pela minha insónia cotidiana. As gotas de água, oriundas de alguma infiltração em um dos andares superiores, despencam sobre as telhas de amianto que recobrem o quintal dos habitantes do primeiro andar e os protegem da falta de educação e de higiene de alguns moradores que jogam lixo através de suas janelas. Não demandaria muito esforço olhar pela janela e identificar o local da infiltração, comunicar ao síndico para que ele desse prosseguimento à s atitudes necessárias para a correção do defeito. Durante o dia esqueço-me dela; à noite, ela não me incomoda e, em certos momentos, chega a embalar-me, cadenciando meu estado letárgico.
São duas horas da manhã de uma quarta-feira que somente se iniciou nos relógios. A cidade está mais calma: poucas sirenes de ambulàncias e de rádio-patrulhas rompem a noite, mas um helicóptero já sobrevoou a região, ao fim da tarde, umas três ou quatro vezes. Não sinto sono como na maioria das noites e talvez fosse hora de caminhar um pouco, não fosse essa preguiça macunaímica que me prende à cadeira e adia o acender o próximo cigarro porque ele está lá no quarto, enquanto eu estou sentado tranquilamente na sala. Se me fosse possível conjugar esta vontade de fumar a uma necessidade fisiológica que já se anuncia timidamente, talvez inspirada pelo ritmo da água que cai lá fora...
Vou ao banheiro; aproveito para dar uma olhada no meu rosto ao espelho: preciso cortar o cabelo e fazer a barba. Mas somente no último dia de férias, daqui a duas semanas. Lembro-me de uma inscrição numa camiseta e digo para mim mesmo: "Não encha o saco, estou de férias."
Vou ao quarto pegar o cigarro e o isqueiro; aproveito para dar uma olhada na mulher que dorme em minha cama: nossa cama. Não resisto dar-lhe um beijo, mesmo arriscando-me a acordá-la.
Volto à sala, acendo o cigarro e penso um pouco. Chego a seguinte constatação: só porque resolvi sentar para escrever um pouco sobre os ruídos que preenchem a noite neste pequeno pedaço da cidade que me envolve, eles se ausentam. Nenhum choro de criança, nenhum banho tardio, nenhum aparelho de som ou televisão ligados, nenhuma voz abafada nos corredores, não há cães para latir, nem pernilongos zumbindo em meus ouvidos. Talvez esperar a chuva novamente a bater nas janelas e algum trovão longínquo...
Voltar ao quarto e me deitar junto à ela, ouvir seu ressonar e sua respiração bem junto a mim, como se estivesse me contando um segredo que somente poderia ser compreendido contado em silêncio, ouvido em silêncio, sonhado em silêncio