Abro o livro, revejo algumas anotações feitas à s pressas na rodoviária antes de embarcar. Queria deixar para depois, dormir mais um pouco, atrasar o café e, quem sabe, esquecer-me do dia. Segunda, terça, quarta... Não receber o jornal deixado à minha porta antes das cinco da manhã; isentar-me das especulações metafísicas que me assaltam. Elas nunca me levarão a lugar algum, sei disso, não há prosseguimento. Não têm nada a ver comigo; são somente um desvio, tomado como forma de distração, apenas para inocentar-me da acusação de ser superficial, de preocupar-me de menos, não dar a devida importància.
Fecho o livro, penso em meus críticos e seus rostos surgem à minha frente e sugerem expressões ingênuas, ou disfarces. Causam-me alergia estes que anseiam ser mártires. Relembro todas as revoluções planejadas por mim e que enchiam de tédio meus companheiros de bebedeira. Agora entendo o aborrecimento em relação à qualquer excitação pretensamente universal, a falsidade de toda tentativa de desfraldar uma bandeira que seja a da humanidade. Tenho apenas uma vida para viver, somente a minha. Não posso pretender viver em minha vida a vida de todos aqueles que integram o conjunto abstrato, imaterial e transcendente da humanidade.
Sei que, agindo dessa maneira, julgo-me superior. Imagino saber coisas que os outros não sabem e penso decidir sobre a utilidade da revelação desses segredos que guardo. São segredos simples; sabedoria essencial, que meu sorriso não revela. Há outros que também os conhecem, são poucos. Considero-me parte de uma elite, de um exército de guardiões que de vez em quando se encontram e trocamos olhares e rimos, nos abraçamos e divertimos à s custas das desgraças alheias, e das nossas próprias. É uma tremenda besteira, com certeza, como tudo o mais.
Abdiquei da posição adolescente de revolucionário do mundo para assumir um cargo discreto, eventualmente escandaloso, situado à margem, um pouco distanciado do foco central das ações, de forma a ampliar o campo de visão. Não sou nenhum profeta, nem sacerdote capaz de interpretar os oráculos e os enigmas balbuciados pelas pitonisas. Sou egoísta... Prefiro observar a agir, digamos que faz parte da minha natureza.
É. Preferia deixar para depois, amanhã, semana ou mês que vem... Gostaria de estar em casa agora, encarando o teto sem pensar em nada. Não ter motivos para rir ou para chorar... Não ver ninguém que me divertisse em sua tragicómica e impossível busca de sentido. Boiar na superfície, não mergulhar. Evitar buscar as relações intrínsecas, ignorar as variáveis que interferem nos processos, renunciar toda explicação possível, a aferição de sentidos. Não pensar no futuro, não ficar arrotando o almoço.
O ónibus chega ao destino. É hora de colocar o livro embaixo do braço. Dar uma volta pela cidade, beber um refrigerante ou uma cerveja, dependendo da disposição do meu estómago nesta hora da manhã. Fingir um falso deslumbramento, acender um cigarro e observar as pessoas, como se fossem monumentos, como se fossem ruínas antigas...