Uma história de amor
Jan Muá
25 de janeiro de 202
A história que aqui se narra começou desajeitadamente. Parecia até ter começado por casual camaradagem . Mas a verdade é que aos poucos foi se adensando, e tornou-se mais interessante do que inicialmente se supunha.
Trata-se de um cidadão e de uma dama vindos das camadas populares caminhando juntos num dia de verão junto ao lago. Os dois eram de meia idade e dispostos a conversar. Havia duas horas que tinham se conhecido e num lance de mútua anuência resolveram aproveitar o clube para fazerem uma caminhada a dois.
Parece ter sido uma decisão acertada pois a caminhada parece ter servido para que o livro do inconsciente mostrasse como uma relação pode se abrir rapidamente em muitas páginas.
A caminhada começou como se fora numa competição. No Km 1. Já quando os dois chegaram ao balão que marcava o fim da primeira rodada, na estação da bandeirada foi notado que a caminhada tinha sido caracterizada por discursos interessantes e inflamados com a dama tomando a dianteira como protagonista.
Logo na primeira rodada já se notava o predomínio do discurso dela. A passos largos, de short cingido a suas atléticas formas e blusa larga em peito aberto, cabelos soltos ao vento, arengava para o companheiro discursos que pareciam interessá-lo muito, tendo em vista a total e pacífica absorção que ele fazia da palavra dela.
Mas estávamos só na primeira rodada. Na segunda passagem pela bandeira de controle os observadores notaram que a situação permanecia inalterada. Passo firme da dupla no traçado da pista da caminhada e a dama falando pelos dois e gesticulando bastante, muito desenvolta, com gestos aparentemente persuasivos, contando alguma interessante história que a pista, as árvores e os espaços percorridos não contaram para este narrador.
Voltando a ser observada na passarela ao passar ali no balão pela quinta vez, o passo continuava uniforme com o companheirão aparentemente subjugado pelo discurso e pela psicológica situação que lhe oferecia a camaradagem.
Sempre que passavam eram notados seus trajes sport, o desembaraço da madame e o à vontade com que os dois caminhavam e desaparecendo depois lá adiante na curva da passarela.
A cada rodada o discurso intenso acompanhado de vigorosos gestos e acentos davam a impressão que estavam gerando convicção, atração e admiração no companheiro que se mostrava mais um pupilo do que um aspirante a condomínio fechado.
Mas eis que, surpreendentemente, na sétima rodada, o cavalheiro já conversava e ela já escutava. Voz pausada, tranquila. Parece que chegara a hora do balanço subjetivo do entendimento das partes. Dava a impressão do fim da supremacia da palavra feminina que tinha empreendido até ali uma linha de vitoriosa conquista. A pergunta agora era esta: será¿
Na volta oito, tudo volta ao normal. De novo a dama comandando. Tinham passado por aquele lugar uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete vezes. Na oitava ela retoma a ponta. Como numa corrida a sério. Dita o ritmo da conversa e pronto. Parecem já dois namorados. Menos gestos, mais naturalidade. Menos nervosismo. Caminhavam agora mais firmes, mais ao natural. A ênfase, o calor, a intensidade na palavra, a argumentação, os gestos abundantes, os olhares, as pausas, as paradas explicativas já não eram tão necessárias. Ele estava do lado dela, achava ela convincente. Razões e emoções caminhavam juntas.
E agora, José¿
O discurso fora dela até ali. Teatralizado, narrado, com gestos e variações de voz. Mas vitorioso, ao que parece. Eloquência treinada como se estivesse reproduzindo um personagem de suas leituras de romances tropicais.
Como se fosse numa novela histórica os efeito eram iguais. Na nona volta, os dois já dialogavam, lado a lado, como duas partes querendo participar do convite para um banquete.
Era na passagem do balão que registrava o fim de cada rodada que que o relógio da narrativa se abastecia.
No relato ficam omissos todos os demais lances, os demais passos, as demais vozes, os demais acentos emocionais do discurso.
Mas pela regularidade e intensidade do protagonismo da dama parecia desensolar-se ali um pequeno ou grande romance.
Já durava hora e meia a caminhada. Foram 12 registros na faixa de controle do balão. Agora parece ter terminado a caminhada deles. De verdade.
O repórter não acusou mais passagens depois da décima segunda rodada.
Parece que a outra parte da história – a parte oculta – vai acontecer fora dos flashs e das objetivas postadas na faixa de controle do balão. Chegarão a algum lado, certamente. Quem sabe se abraçados, aos beijos, harmonizados, próximos, amigos, apaixonados, prontos para pedir a bênção do pastor ou do padre.
Sabemos só que partiram. Não sabemos em que direção. Não deixaram endereço. Ele e ela de trajes esportivos livres.
Um novo narrador contará o resto da história na crônica da madrugada.
Jan Muá
25 de janeiro de 2022.
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