Sono profundo
Aroldo Arão de Medeiros
Ele e a esposa foram convidados pelos vizinhos para o casamento do filho. Como a amizade perdura há mais de quarenta anos, não titubearam, disseram um sim como se eles é que fossem se amarrar, novamente.
No dia anterior ao evento, após o almoço, arrumaram-se e partiram rumo a Joinville. O casório seria em Curitiba, mas eles dormiriam uma noite na Manchester Catarinense, na casa de um filho, o Rodrigo. Aproveitariam para visitar a nora e matar as saudades da neta.
Pela manhã, tomaram um generoso café e partiram para a festa. Antes passariam na casa de outro filho, José, que levaria a mãe até o salão de beleza que pertencia ao seu sogro, Seu Victor, onde o mesmo faria o corte que melhor se adequaria a seu rosto.
Ele ficou proseando com José, matando as saudades e o tempo até a hora do almoço. Encontraram as mulheres no restaurante, onde fizeram refeição sem exageros, pois esperavam tirar a barriga da miséria na festa.
À tarde, José os levou ao casamento, para que o pai pudesse beber à vontade e não se preocupasse com eventual fiscalização da polícia. Sentaram-se numa mesa em que estavam os vizinhos, a filha destes e o marido e mais um casal amigo de longa data, que também residia próximo a eles. Música, bebida e comida excelentes.
Terminada a festa, telefonou para José vir buscá-los. Dormiriam no apartamento do sogro de José, o dono do salão de beleza, porque Rodrigo viria de Joinville para usufruir um dia na companhia dos pais e do irmão.
Ao chegarem no apartamento do cabeleireiro, estacionaram o carro na garagem, mas não tinham a chave da porta. Tocaram a campainha e nada do senhor atender.
Ligaram para o celular, escutavam o barulho chamando até acabar o som. Resolveram ligar para o telefone fixo. Também nada.
Parecia que o homem havia morrido. A filha, desesperada, soltando as primeiras lágrimas, disse que, lá da entrada do edifício, havia notado a cabeça do pai encostada na parede, justo no lugar onde ele costuma se recostar para fumar.
Foram para a frente do prédio e lá estava a cabeça, ou melhor o homem. Ligaram para o Corpo de Bombeiros, uma vez que seria possível entrar pela janela com ajuda de escada extensível. Os “prestativos” bombeiros se negaram a vir, instruindo-os a chamar o SAMU. Ligaram. E também para um chaveiro. O SAMU prometeu vir, mas apenas o chaveiro apareceu.
Solucionada uma das questões: abrir a porta. Ele e José ficaram na rua, telefonando para dispensar os préstimos do SAMU. A esposa, fã incondicional das séries televisivas, com filmes de recheados de crimes, tais como Criminal Minds, Law and Order e NCIS, não perdeu tempo. Foi só o profissional abrir a porta e ela se precipitou em desabalada carreira, no afã de encontrar o cadáver do cabeleireiro.
O apartamento, enorme, parecia mais um labirinto para ela, que não o conhecia. Até que o encontrou sentado, imóvel. Colocou dois dedos na veia que passa pelo pescoço e sentiu o movimento de sangue circulando. Que alívio. Chamou-o sem muito alarido para não assustá-lo. Fez sinal de positivo ao filho e ao marido, que ainda se encontravam na rua. O cabeleireiro provavelmente havia ingerido remédio misturado com alguma dose de conhaque, sua bebida preferida. Depois, o homem passou a noite toda se desculpando: prometo que nunca mais vai acontecer isso.
Uma coisa é certa. Esse acontecimento serviu para melhorar a amizade, que já era boa, entre o cabeleireiro, a filha e o genro. Porque em consequência do susto o casal decidiu se mudar do apartamento onde moravam, colocaram-no para alugar, e foram residir com o homem do “sono profundo”.
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