GALIZA, ROSALIA DE CASTRO, RAMÓN PIÑEIRO
João Ferreira
Julho d 2022
Foi em 1956 que tive o primeiro contato com a Galiza. Andei por lá um bom tempo, pesquisando a expressão saudosista da literatura galega. No meu regresso a Portugal aproveitei como transporte o comboio ou trem que circulava entre Vigo e Porto. Na viagem , entretive-me com os apontamentos sobre poetas galegos e seus traços saudosistas que havia anotado em caderno especial, e tudo foi tão rápido que não me dei conta quando o trem já estava chegando ao Porto. O trem parou e eu, distraído, peguei a maleta mas deixei no banco o caderno de meus apontamentos de pesquisa. Essa viagem me proporcionou contatos em Vigo, onde era publicada a revista do grupo de intelectuais galeguistas que em plena ditadura defendiam a singularidade da língua, do pensamento e da cultura galega. A história cultural da Galiza já contava com intelectuais anteriores que escreveram sobre a especificidade cultural galega. Estão neste caso o Padre Sarmiento (s.XVIII) nascido em Villafranca del Bierzo e os escritores galegos Curro Henriquez, Castelao, Otero Pedrayo e Rosalía de Castro. Modernamente foi o grupo liderado por Ramón Piñeiro (1915-1990), filósofo e pensador galego, que dinamizou o interesse pelos estudos galegos. Piñeiro reuniu em torno dele um punhado de jovens poetas e escritores que deram prioridade aos valores regionais de cultura e língua galega, tornando-se, nessa caminhada, a figura central da defesa da cultura galega e deixando para a posteridade uma obra significativa. Foi tradutor, para o galego, da obra Was ist das die Philosophie ( O que é Filosofia) de Martin Heidegger, e publicou várias obras, entre as quais: A língua sangue do Espiritu (1952), Para unha filosofia da Saudade (1953), Filosofia da Saudade (1984) e outras. Na transição para a democracia, em 1977, Ramón teve um papel importante, tornando-se um dos responsáveis pela criação do Estatuto de Galicia. Nessa viagem de 1956, fui a Ourense visitar Vicente Risco (1884-1963) , autor da Teoria do Nacionalismo Galego. Risco era no tempo uma lenda na cultura galega. De todo esse período ficou a amizade de Ramón Piñeiro que mais tarde encontrei num congresso de Filologia no Rio de janeiro em 1977 e que depois me visitou em Brasília em 1984, oferecendo-me, autografado, seu livro Filosofia da Saudade, que tenho ainda em minha biblioteca. Como expressão de luta pela preservação da língua galega, o grupo de Ramón Piñeiro mantinha nesse tempo seus intelectuais publicando semanalmente no jornal Faro de Vigo um caderno escrito em língua galega, numa época em que o regime político espanhol não reconhecia o direito da região em usar a língua própria nas escolas nem nos nos meios de comunicação social. Só depois do término da ditadura, após 1977 e no ambiente de uma Espanha democrática já de pé no Mercado Comum Europeu, a província da Galiza adquiriu sua autonomia linguística e cultural e também seu Estatuto e Governador próprios.
Falando de cultura galega, a título de crônica, gostaria de lembrar que muitos anos depois, ou seja, nos dias 31 de dezembro de 2014 e 1 de janeiro de 2015, encontrando-me na cidade do Porto, em Portugal, participei de uma excursão portuguesa à Galiza, que aproveitei para rever terras e costumes. A excursão fez o percurso desde a cidade do Porto, passando por Vigo, Padrón e Santiago de Compostela, e depois, retornando ao Porto. Os organizadores nos surpreenderam com uma gala de fim de ano, com variedade de vinhos e águas minerais galegas e um menu de requinte com frutos do mar, lagostim, camarão e vieiras à galega, com sobremesa variada, apresentada pela cozinha local. Tudo de acordo com o jeito e os costumes da província irmã.
Antes de terminar, desjaria destacar que na passagem pela cidade de Vigo, com saudade de minhas andanças pela Galiza de outrora, comprei a obra Poesia completa, em edição bilíngue (galego e castelhano) de Rosalia de Castro , poetisa nascida em Santiago de Compostela em 1837 e falecida em Padrón em 1885. Essa Poesia completa é um volumão de 1048 páginas. Bem organizado, contém La Flor (1857), Cantares gallegos (1863), Follas novas(1880),e En las orillas del Sar (1884). Não preciso dizer que este volumão me encantou por me oferecer toda a poesia e todas as vozes da Galiza reproduzidas nas falas de Álvaro Cunqueiro, Garcia Sabell , membros ilustres da tertúlia literária que Ramón reuniu em sua residência quando por lá passei em 1956.
Por estes dias, em Brasília, deu-me vontade de folhear o volumão de Rosalia de Castro. Parei e me entreguei à leitura, centrando minha atenção nos famosos Cantares Gallegos de 1863, na edição bilíngue organizada por Juan Barja. Os versos dos " Cantares galegos" são simples, naturais, espontâneos e não têm artifícios de rima ou de erudições baratas. São alma, coração e amor pela Galiza e por seu povo, por sua língua, por sua cultura. O que se lamenta é que a tradução em castelhano não acompanhe a profundidade da língua galega. A versão espanhola é dura e nem sempre atinge o sugnificado das palavras. O galego de Rosalia é meigo, sentimental, amoroso, encarnando exatamente o tom característico da língua. O galego emprega muito o diminuitivo, em sentido carinhoso e afetivo. E o tradutor nem sempre liga para isso. Por exemplo: meniña (o tradutor traduz por "chiquilla") , papiñas (papitas), boliños (bollitos), festiña (fiesta), gaitiña (gaita), ondiñas (ondas), fontiñas (fuentes), meniñas(chiquillas) . Para ver a variedade de composição, Rosalia emprega umas vezes gaitiña, outras vezes simplesmente gaita. Uma vezes fontiña, outras vezes fonte. Daí a atenção que o tradutor tem de prestar para avaliar o contexto.
Vale a penas escrever algumas notas especiais sobre a aproximação entre a língua galega e o português do Brasil. Mas fica para uma próxima ocasião. Um artigo talvez. Por hoje, é só.
João Ferreira
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