“Eu já acumulo mais experiências do que você poderia imaginar; sei, portanto, que você daí do outro lado lê estas linhas com desinteresse. Seus interesses não vão além do raso, da superfície. Claro que vai largar o que eu escrevo no meio, assim num tipo de cópula sem término, a seco. Você, aí fora, não imagina o que se passa na minha mente porque mal tem tempo de observar o que vai dentro da SUA mente, quanto mais a do outro. Não sabe distinguir uma fantasia oca da realidade espúria que lhe pressiona o cérebro a expelir flatulências pela boca...”
--Porra, depois dessa, vovô, até o capeta leria!
--Caraca, velhote, conta tua história aqui. Se ninguém for ler, pelo menos ouvidos hão de ouvir.
--É, véi. Joga a verdade. Na moral.
--KKKKKKKK.
Os outros se olham. O camarada que riu se parece com um babuíno. Sobrancelhas grandes, lábios carnudos e meio arroxeados de tanta fumaça, cabelos brancos desgrenhados e olhos azuis e claros. Ele parece confuso e cada vez que se aproxima da realidade, emite a risada gutural que o caracteriza.
--Ele se perdeu, mano velho.
--Mas conta, velhinho, como foi que escapou...?
--Muito bem! Conto. Mas me prometem ajudar a encontrar minha casa?
--Prometemos; promessa de escoteiro!
---KKKKKKKK!
--Cala a boca, Cacá.
--...Então...
“Vocês sabem, hoje em dia ser velho não é muito auspicioso. Sou velho há um bom tempo. Acho que já nasci velho, porque sempre vivi na mesma casa—ou melhor, vivia, até ser achado pelas brigadas da juventude. Eu conseguia viver bem de minhas economias e vendendo umas coisinhas que ninguém é de ferro. O problema é que nem tudo que reluz é ouro nessa terra tomada pela juventude; os velhos são detestados desde a época da Grande Praga. Na verdade, o que fizeram foi lamentável. Nós morríamos feito moscas, sendo velhos e fracos. Precisávamos ficar em casa enquanto eles, eles, vocês, podiam e podem tudo. O Velho manda, vocês fazem. É irônico, porque um Velho manda e vocês continuam iguais a nossos pais, contando moedas e guardando as caixas-fortes. Daí arrombam, saqueiam, matam os velhotes e fracos, em nome da Saúde Global Ampliada...”
---KKKKKK!
--Cala a boca, Cacá! O velhinho manda bem!
--Som na caixa, ancião!
“...Bom, eu fazia minha comidinha, regava meus antúrios e minhas velhas samambaias que minha esposa tanto amava, que Deus a tenha. Ela era caprichosa: Pratos pendurados nas paredes, retratos de família, cortinas cheias de rendas. Cantos da casa com móveis, vasinhos de vários tamanhos...Essa foi nossa casa, onde criamos dois filhos. Os dois tiveram de tudo: Escola, casa, educação e exemplos; pena que a Grande Peste a levou e os meus filhos se espalharam no mundo. Se espalharam tanto que eu já não existo para eles. Nunca telefonaram, mesmo depois que ela morreu. Fiquei só no mundo. Sou um pai órfão de filhos; ingratos. Seguia adiante, sempre sozinho.”
“Se saísse, ia disfarçado. Cheguei a comprar uma máscara de borracha, bem feita, de um homem mais moço. Dessas de carnaval, que se usavam antes da Epidemia. Uns e outros se disfarçavam de homem ou mulher, e vice-versa: Era uma farra! Eu, não: Foi assim que conseguia comprar umas coisas para comer. Já que meus filhos não ligavam nunca, cortei a linha de telefone. Assim, ninguém me encheria a paciência. Sempre fui só e minha esposa me recriminava. Eu, no entanto, sempre cultivei meu foro íntimo, minha alma. Minha alma era ela, a casa respirava suas plantas, as flores eram dela, os quadros eram nossas lembranças, tantas viagens, tantos lugares...Fico pensando: Somos o que somos por causa de nossas memórias e o que fazemos delas é de nossa responsabilidade. Minha casa era meu jardim secreto, avesso ao mundo, trancafiado numa casa de outra era, uma joia rara em meio ao pântano dos dias atuais...Até que um dia...”
---KKKKKKKKKKK!
--Porra, cara, na moral, se tu der um pio de novo, juro que vai ficar sem boca. Toca a fita, velho!
“Até que um dia, me encontraram: foram os Brincalhões, grupos de crianças de rua que são pagos com comida barata para denunciar velhinhos como eu. Eu estava entrando em casa, vi um moleque magrelo cheirando um saquinho, perdido numa névoa. Engano meu, era um deles. Uma pedra me atingiu na perna, abrindo uma ferida. Só queria entrar em casa, a minha casa, a casa de minha esposa, de minha família...Eles berravam: Velhote, velhote!!! Velhote, Múminha, velhinho, velhote!!!! A seguir, chegaram as Unidades de Isolamento Social Compulsória. Me jogaram lá dentro e já me deram um remédio na bunda. Fiquei apagado, até acordar num quartinho que cheirava a pum. Tinha quatro outros velhinhos lá no Orquidário, que é como chamavam a ala. “
“Leram a Bula da Velhice. Eu fingia que tomava os remédios e dava para o companheiro mais novo, que pedia para dormir e não conseguia...Eu ficava atento aos horários. Tinha a hora do sol e nessas horas tinha umas falhas. Tinha um guarda que era mais fracote. Eu o fiz beber um suco que tinha meus remédios; pirou na batatinha o coitado. Deu de passar a mão nas auxiliares e rir feito louco; isto me deu a chance de fugir com a chave dele. Sempre fui esperto, não é à toa que vivi até agora e sozinho.”
--Você fugiu do hospício, vovô?
--Fugi.
--Simples assim?
--É. Vão fazer o que prometeram?
--Na moral, velho. É nóis. Está liberado.
--Não vou sozinho. Vocês são convidados. Só tem uma condição.
--KKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKK!
--Porra, véi!
--Convidados? Com muita honra.
--Tirem os sapatos na porta.
--Só isto?
--Sem Brincalhões no pedaço.
Nunca mais o velhinho ficou sozinho; nunca mais os Brincalhões chegaram sequer perto. Muitos cheiravam saquinhos para sempre... Puderam ver as maravilhas da esposa dela, comeram boa comida.
E foi bom.
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