A Quarta.
Imaginem uma praia onde nosso solitário se isolava. Não era longínqua, digamos a cem quilômetros daqui. Ele já estava no segundo ano da faculdade e mal havia saído do tenebroso caso com a infante replicante e falsária quando a conheceu andando nas areias, sozinha e de cabelos revoltos—lá venta muito e tem areias monazíticas, boas para reumatismo e duras para praticar futebol de areia, nunca fique de pés no chão somente, use tênis como em cimento, ele recomendava. Ele tinha um quê de velho e ela tinha olhos de corça lindos, que sorriam ao cruzarem seu olhar. Se se pode dizer algo em sua defesa é que ele sempre admirou a beleza e quando a viu andando na praia flutuando como uma sereia ao vento daquela manhã de cristal, foi como se um raio o atingisse. Ele a viu sozinha de início, mas ela se dirigiu mansamente a um guarda-sol, estava com a família e sua irmã era belíssima também, de enormes olhos azuis e um sorriso impressionante. O que encantava na pequena era sua presença, sua luz própria, a leveza no andar e o sorriso de covinhas encantador que deixava ver as pontinhas dos dentes da frente quando se divertia. Ela era no mínimo o máximo; tinha a beleza de ser jovem e a maturidade de quem se conquista por inteira, no domínio da própria presença. Há as pequenas virtudes das grandes pedras, os cristais que brilham por força do sol dilatado além das nuvens, há a beleza em estado puro que emana de um sorriso assim. Impossível não olhar para ela e sorrir, fazendo bem à alma. Essa menina andava sozinha na praia quando ele a viu, solitário em sua cadeira de alumínio, com um livro na mão. Ele gostava de representar a si mesmo—e aos outros—que era sozinho. No entanto, a Beleza, o Firmamento, as Estrelas e o Sonho sempre abrem brechas mesmo nos corações mais frios e determinados a resistir ao implacável tormento da paixão e do desejo. O Mundo não deixa de ser surpreendente sempre, inevitável. O que mais o impressionou foi aquela presença, um recorte de luz na luz, sem sombra alguma no chão. Ele não era livre, um beijo o livrara por pouco da solidão arenosa e pantanosa do esquecimento, mas não era algo importante—sabemos que alguém nos importa realmente quando vibramos até a última célula por um encontro, um olhar que seja um olhar apenas, uma olhadela somente, um clarão apenas e só, uma estrela no céu. Ah, a falta que ela faz hoje em dia!
“Posso evocar sua beleza, cada detalhe de seu corpo esguio, não alta como a irmã, mas de braços longos e bem torneados, a cintura fina de uma miss e o sorriso de dentes perfeitos. Cada detalhe eu posso rever: Um gesto seu era encantador. As mãos finas, de unhas pintadas de esmalte vermelho e alegre. Os cotovelos apoiados no espaldar da cadeira de praia; o vento, o mar, o olhar dela às vezes perdido na direção das ondas, um prenúncio, algo de trágico e comovente na maneira com que se preocupava; nunca tive a oportunidade( nem sequer me dei esta oportunidade) de perguntar em quê pensava tão profundamente com aqueles olhos tristes e cintilantes, escuros como jabuticabas, o pescoço fino de uma escultura encimado pela cabeça de lindos cabelos, cachos escuros que revoavam nas manchas da tarde que se consumia em si mesma, no alvoroço que me batia ali, lendo um livro de um romance de realismo fantástico( talvez de Juan Rulfo) e a bela ali, na tarde, sem recortes na sombra, mexendo com todos os instintos desse pobre retratado. Ah, a falta que ela me faz, que já fez e que fará sempre...”
Como sempre acontece com todos os mortais atingidos por este deus de linhas tortas que é Cupido, ele se apaixonou imensamente e queria gritar isto ao vento e ao mar, queria dar uma banana ao mundo que o comprometia. Nestas horas tudo incomoda: o livro com linguagem enrolada que dá vontade de arremessar ao longe, o pernilongo que afoito suga o néctar da vida, o camarada que passa batendo com alvoroço o anúncio do biscoito batido e velho, a sola do pé ardida de jogar futebol. Jogava tanto futebol na areia que achava que jogava e se iludia, às vezes se confundindo e imaginando ser Garrincha, entortava as pernas em drible hilário, às vezes em arrancada genial em direção ao pequeno gol em meio às pequenas dunas de areia(como tudo se esfarela, meu Deus...)
Só ela está lá, como uma estátua de bronze e luz.
Quando tomará coragem? Eu, de minha parte, quase posso ver sua hesitação. Já o vi várias vezes hesitando quando mais certeza deveria ter. Eu acho que ele não deixa de ser patético em sua claudicação intermitente. Já o disse a ele, sim e não me acusem de ser omisso, mesmo tendo de ser neutro feito um juiz ouvindo as barbaridades que um tribunal popular pode ter com seu circo habitual de horrores: Traições de parte a parte, moças abandonadas com filhos e barriga, aluguéis atrasados, a doçura do assassino silencioso, o abandono da velhinha no lar de idosos, os pais órfãos dos filhos. Paciência, eu digo a vocês que não passam de lavadeiras fazendo fofocas à margem do livro lavando a roupa suja na beira dos rios. Bobagem, diz ele, consciente de que minha neutralidade vai até onde termina sua insensatez.
“Tomei coragem, entre uma página de Sábato e outra de Rulfo. Ela sorriu a me ver me aproximar. A Outra como uma sombra, me sepultava uma forma de paixão—a conquista, a vibração pelo novo, o pulso do dia e da primavera que sempre me faz sorrir a partir dos fulgores de agosto. Ela estava lá na estação da luz e do passaredo, como que esperando minhas evoluções e alegorias, porque meus adereços nunca foram bons e mais me fazia de intrigante quanto meus olhos mais cintilavam (elas gostam da inteligência que transborda nos olhos) e ela percebia, um sorriso de covinhas disfarçado porque tem muito de ridículo um homem se aproximar de uma mulher como um caranguejo, de lado e tateante. À pergunta clássica de se ela vem sempre ali, parece uma eternidade que ela usa para responder “sim, e você” como se tivesse ensaiado para me mostrar que sabia de tudo, de maneira indisfarçável, destemida e poderosa feita sua risada que se ouvia de longe quando ela queria brincar. Quão poderosa é uma mulher formosa e que sabe disto, sem a humildade desnecessária quando se trata de questões de amor e atração!”
O Amor tem lá suas razões. Era para ser. Destinos não se confundem e se acham na Imensidão do Cosmos. Uma pedra rola solta no cinturão de Van-Hallen. Outra se desloca, elas se tocam e o inferno baixa à terra. O horror. Mas as pedras estavam em sua calma e vasta presença silenciosa, ocas por dentro de consciência mineral. Alguém as impulsionou para desencadearem a sexta extinção; eu que não fui, garanto! O mundo não morre por minha ação ou minha omissão. Não hoje, nem aqui onde se observa o surgimento de uma esperança, talvez a única de meu pequeno retratado. No fundo, todos esperamos o amor de nossa vida. Ele havia encontrado alguém estelar, o problema é que toda realização pressupõe um ápice, um cume depois de sofrimentos inauditos. Eu não estava lá, senão teria sussurrado:
--Vá lá. Conquiste o que é seu, idiota.
Ele tomou coragem. Sentou-se à beira da Beleza e do Indizível. Os cabelos dela eram hinos à leveza, escuros e luzidios. As orelhas perfeitas, a curva de seu pescoço, as mãos de formas lindas, a cintura de sereia.
Ela era uma belezinha.
Ébrio como todo homem à beira da paixão, quis jogar-se no Rio da Vida—ele pensou que já fosse mais que corrente, que o lago de peixes começava a se formar em sua visão de leitor de romances e de literatura fantástica. Ela tinha dezessete anos. Ele uns vinte e poucos. Suas conversas nada tinham de pomposas; ele a olhava com carinho e imensa paixão, ela se esticava na cadeira sabendo da sedução que produzia. Ele a via como uma deusa de morenas formas. Não havia nada que importasse mais que aqueles momentos mágicos, nem o vento que trazia a luz, nem o calor que se infiltrava nos quartos secos da maresia que tudo invadia. Ele corria os olhos pelos arrecifes que existiam no final da praia, areias monazíticas e colinas de pura vida selvagem. Ele sentia o peito se abrir em flor e a dor de se saber importante não lhe alertava mais de quão perigosos são estes momentos abandonados à flauta de pã e ao vento de sua cantoria... Pois foi ele mesmo que se enrolou na cauda do cometa moreno. Uma cena se resguardou e ela o deixou fazer: Criou como que uma cerca de areia molhada em sua coxa, o fato dela haver deixado falava tanto de suas intenções como de seu desembaraço na questão do romance que poderia haver e que estava certo de que iria acontecer para ele que via se erguer a pequena barreira desfeita com um movimento brusco seguido de um sorriso quando seus pais se acercaram. Os sinais trocados o faziam iludir-se de que a causa estava ganha, de que finalmente iria superar a pequena mentirosa, mas não. Os afoitos não sabem esperar, imaginam tudo e caem do céu quando os anjos que os elevaram o fazem desabar do azul infinito.
Alguém é de alguém? Quer dizer, alguém realmente pertence a algum outro ou nunca, nada disso realmente existe? Vendo sob o ângulo do tempo passado, ele, lá, isolado em sua barreira de areia molhada, ela se incomodada talvez sem aludir ao fato, deixando a areia criar a forma de barreira imperfeita e frágil, ela olhando dentro dele e sondando, pesquisando, aprendendo sobre ele em segundos o que ele levaria horas para saber dele, a forma e o conteúdo aberto nas nuvens que se acirram no horizonte, o vento e as formas esparsas, tudo se condensando nos minutos opressos do conta-gotas da vida, um instante e o muro se vai, no compasso de um movimento arrebatador e o disfarce pela proximidade dos pais, ela sorri e se levanta e ele, também, o sorriso que se estende aos olhos da linda irmã de olhos azuis e fala mansa, serena e calma. Ele se aquieta. Nada há nem houve, ele apenas intenção de amar ou de ser amado. Ela, pouco clara mas analítica, crítica, olhos profundos e as covinhas de sempre, oh Deus. Eu aqui escrevendo sobre ela como se eu fosse um observador neutro, mas não, ela mexia com ele e mexe comigo que escrevo, ela pouco clara, ele só faltando passar do ponto, ele sozinho na praia, ela se foi, apenas sobra a sombra dela, a presença que toda mulher tem nas ausências, a areia molhada que deixou de ter suas formas, ela um castelo de areia que ele mais uma vez construiu; ninguém pertence a coisa alguma, somos reflexos na areia do tempo. Hoje vibramos, amanhã somos potências, depois uma saudade, apenas essências.
“—Fiquei sabendo, pouco depois, que mais que uma muralha, havia uma barreira, outro, talvez um dono que se interessava ou talvez um alguém que ela amava ainda, na beira da escuridão do dia, ainda ela não sabia se poderia se aproximar, talvez ele a balançara sem a envolver completamente; a questão do amor se repete e se resume em posses. Não havia a posse, somos egoístas, ela não se convencera e se fora. Voltei a Rulfo, Cortazar e Borges, Neruda e Marques, fiquei sem minha soberana. Algum tempo depois, ela se desvencilhou do traste mas eu, eu já era outro. Nunca se molda a mágica do amor com cacos refeitos. O problema do amor se resume e se repete: Cacos desfeitos não movem paixões arrasadoras, ou se está ou não se fica.”
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