O primeiro ruído da manhã é o vento que bate nas venezianas; meu apartamento é antigo, daqueles que têm venezianas de correr e uma ou outra vez tive de me haver com morcegos em pleno quarto, voejando sem tocar as paredes, em silêncio absoluto—descobri o danado pelo ruflar de asas, mas isso não vem ao caso porque já despertei agora e vou contar a vocês que fui urinar e duvido que aqui ninguém faz isso. Podem dizer, mas afinal isso aqui é ficção? O camarada escreve sobre a realidade, o que acontece ou é um ficcionista, um ilusionista?
Eu não abri este texto para ler sobre mijadas, eu quero algo mais conceitual, digamos!!! Aí eu digo, quem disse que ao acordarmos vamos urinar? Tem uns que acordam e já entram no Nirvana, ou melhor, nem acordam porque já estão em outro mundo. Alguns há que acordam beijando a amada, daí outros sabores entram na discussão da singularidade do mundo, seriam outras estórias então. Enfim, não estou aqui para descrever cenas tórridas de casais apaixonados e sim para dizer que depois de balançar o dito-cujo, vou à cozinha de meu apartamentozinho bem arranjado, onde tenho uma sala abarrotada de livros organizados por assunto, um quarto que tem tamanho para cama dobrável, um banheiro com um box e uma cozinha com extensão para área de serviço.
Desde que me separei, me acostumei a arrumar o espaço em que vivo, mas já era organizado desde pequeno; meu quart sempre estava em ordem, minha escrivaninha de madeira avermelhada e fórmica sempre fechada e o piano de minha tia sempre lustroso, só funcionava nas aulas que ela tentava nos dar—e nunca conseguia porque não tinha paciência conosco, ela gostava mesmo é de tocar, e tome mazurca, tome Beethoven, Sybelius e Mozart; seus dedos finos voavam pelas teclas do seu bem cuidado piano e nossos pais a estimulavam porém justamente os filhos que queriam ver dedilhando não passavam de meros bifinhos ou notas de dissonantes cacofonias de crianças peraltas. Dali nunca sairia nenhum gênio.
Bom, escovo os dentes e a água sai quente da torneira de aquecimento central, esse milagre que a civilização coloca em cada casa, em cada apartamento, transformando-o em possível câmara de gás em potencial; eu, que nunca fui bobo, fecho a válvula depois do uso e mantenho ventiladas as janelas, sou moço demais para morrer de besteira. Viver, morrer, essência mesmo de tudo; um dia estamos casados, noutro dia a coisa azeda, mais em outro estou sozinho, mais tarde ainda amanheço sem dor. Eu já disse aos meus, não autorizo ninguém a me incomodar e me deixar feito um queijo numa prateleira de padaria, exposto às moscas.
Esqueci de dizer que o café assovia na cafeteira e o cereal eu misturo com leite, mel e algum chocolate em pó, na mistura que une e amalgama os elétrons e pósitrons da alma quântica aos intestinos para mais funções que prefiro aqui delegar a outro capítulo. Eu me alongo, mas tudo tem uma explicação, eu defini este período em que aqui descrevo o mundo passo a passo porque eu decidi que o mundo é uma tartaruga enorme, nos ombros carregando o peso cósmico da existência; ora, se assim é e foi, eu prefiro descrever de forma definitiva o que sucede com a alma solitária, acostumada aos estalidos das capas dos velhos livros e à ventania que bate nas venezianas, um que outro morcego ainda dormindo no escuro, coçando os narizes da turma toda. Será que os morcegos pensam como nós, ou dormem numa inconsciência infinita e só despertam para comer os frutos que se espalham no pátio de nossas moradas?
Distraí-me, o café ferveu, mas gosto dele bem quente, de jeito que minha língua arde e eventualmente queimo o esôfago em desatento gole, mas a tartaruga se mexe e com ela o mundo se encaixa; se ela marcha, quem sou eu para parar o mundo? De tal forma que espanto o morcego que rí de minha indecência, volteia sem bater nas paredes enquanto eu medito sobre o Nirvana do mundo quântico, do ser e não ser e do haver sido em passado remoto, antes de a tartaruga mover o casco e decidir que este mundo em que habitamos haveria de se tornar um inferno de quente. Eu acho os morcegos bonitinhos, aqueles dentes para fora lembram-me do Mazaroppi; Vocês já tentaram pegar um morcego em vôo? Por favor, não tentem.
Bom, eu gosto de pão na chapa, menos queimado que este, pois me distraio toda hora narrando a rotina para vocês enquanto ainda não li nada hoje. Aventuro-me com Proust, ontem foi com Carl Ove Knausgard, amanhã Charles Dickens, quanto mais eu leio mais eu confundo as histórias. Prefiro assim a uma linearidade que já não me convém. Eu sei, vocês vão se perguntar, mas isso dá em algum lugar, afinal?
Eu digo não. Perguntem à tartaruga que, quando se move, move o mundo
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