1.A agenda apertada provoca maremotos de compromissos e inibe o pensamento sobre a própria vida, fazendo a pessoa se exibir sem saber, correndo o risco de sumir em meio à correnteza; em geral, as pessoas que te cercam mal notam o que você sente porque estão acostumadas ao seu sumiço diário. A segurança delas depende de seu compromisso pessoal de sumir sempre com hora marcada, de bater o ponto da solidão que acossa sua alma. Estar assim é estar automatizado na sofreguidão da obrigação, da conta que nunca se paga e da vida que passa rasa, sem a devida e necessária crítica. Daí, as unhas crescem e o cabelo acinzenta, as pálpebras ficam pesadas de sono e quando você se olha no espelho, talvez não reconheça tanto ou mais aquele que se entrega ao caos sem a ordem necessária de seu próprio ser. Existir assim é duvidoso, é sufocante, é indesejável, mas é o que é e, se você não se compromete, aquilo que se diz passa a ser verdade; a condição de “vagabundo” passa a prevalecer sobre a de trabalhador e qualquer deslize pode ser interpretado como um convite à idiotia dos desbocados de plantão. As vivandeiras vão se alimentar de seu ócio, pensarão no quanto você trabalhava e dirão: “Como, agora fica aí vagando com um pijama e com as ceroulas mijadas”. Os filhos o olharão com estranheza ao verem o pai lendo o jornal de novo, e de novo, e de novo. A mulher o verá como um desvalido: Inútil até na cama. Inútil, não ganha mais nada; bem se vê que meus pais tinham razão, ela pensará à meia-boca, hálito de café passado no coador. Bem se vê, o jornal grita: “Circo lotado pega fogo, palhaço paga de culpado e só elefante sai ferido”, ou coisa assim. Vagabundo, tanto passou o ponto que passou do ponto, passou do ponto. Passou.
2. Cuidado com as aves vorazes. Elas bicam os olhos dos visitantes incautos; consegui ver de onde elas surgem, os ovos ficam desprotegidos nos ninhos, dão excelentes omeletes. Preciso usar a fantasia mais adequada pois preciso dar de comer aos meus filhos. As aves têm plumagem acobreada, os bicos vermelhos feito sangue e os olhos amarelos e faiscantes. Eu preciso tomar coragem e apanhar os ovos, eu cuido de três meninos e minha esposa está entrevada; ela sabe dos riscos e é a primeira a me receber com festa quando trago aqueles ovos de casca dura e avermelhada. Ela cuida de meus ferimentos, quase perdi uma vista para uma bicada, minhas orelhas são mordidas e deformadas. Qualquer coisa vale a pena só para eu ter o prazer de ver o sorriso de meus pequenos esfaimados a comer os ovos danados. Cuidado com as aves vorazes!
3.O Jornal diz: “Elefante sobrevive em circo queimado: palhaço incriminado!”. Felizmente, não há vítimas, nem feridos, porque só o palhaço andava em sua bicicleta no palco e o elefante barria alegre para as micagens do coitado que vocês sabem, sempre carrega a dor no peito apesar de tanta alegria estampada nos lábios. Quem salvou o elefante foi a mulher do trapezista que viu que o fogo se iniciara quando o meliante sorridente caiu de tonto em cima da fiação elétrica exposta e nem viu onde o fogo foi parar porque foi num canto urinar. A mulher do trapezista, mais do que acostumada às acrobacias aqui e além-circo, resgatou o pobre animal de sair chamuscado, mas da lona não restou nada de nada. De tal forma que o palhaço segue detido para averiguações. Infeliz da vida.
4.Quem sabe seja este o momento de eu parar? Eu cansei de dobrar os papéis, cansei de fazer pacotes, de grudar selos nos pacotes, de embalar os pacotes em caixas e dentro de caixotes de madeira, eu cansei de bater ponto, furar o cartão—patrão antiquado—e sangrar dia a dia; eu ganho dinheiro, a família vai bem, e minha alma? Eu que sonhara tanto, assim eu passo meus dias, incomodado, tomando o café passado no coador, ruminando no depois e no antes, no passado e no futuro, no abismo da espera infinda, na armadilha que eu mesmo me fiz. Eu que de ponto em ponto faço mais da minha mortalha; eu passo.
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