Meu sabiá querido que não cantou
Jan Muá
3 de fevereiro de 2024
No dorso de um ramo de abacateiro avistei um lindo sabiá. Não era a hora de seu doce canto mas foi um prazer tê-lo assim por perto para poder fazer uma ideia de seu comportamento. Pareceu-me um autêntico, um senhor sabiá! Um sabiá perfeito. Um cavalheiro erguendo sua voz para o mundo. Campeão da cantoria regrada e doce. Muito diplomata, no poleiro da árvore dos abacates, aliara-se ao ritmo da aragem e do vento, no que chamou minha atenção. Pela aparência mostrava uma personalidade enxuta mas que guardava silêncio absoluto.
Era um sabiá laranjeira daqueles que nas tardes evanescentes do dia frequentam a folhagem caída das árvores em nossas quadras. Tinha algo diferente este sabiá. E isso me intrigava. A par de uma personalidade exemplar, distinguia-se pela quietude, numa réplica natural ao teor da tarde mansa que fazia. Cabecinha e bico padronizado, lombo e rabo característico, mostrava-se em sua plenitude de forma como um dos mais belos exemplares que vi frequentarem nossas devesas. Minha atenção evoluiu para contemplá-lo em pleno pouso e ver nele um exemplar perfeito daqueles de que falava Platão. No momento em que o comtemplava, já as nuvens adensavam no firmamento, fazendo-nos prever que o tempo mudaria em poucos minutos. Sem me preocupar com a mudança de tempo, curioso, não desgrudei os olhos do meu sabiá perfeito pousado estrategicamente num ramo interno do fecundo abacateiro. Crescia em mim a ideia de que poderia acompanhar o espetáculo teatral de um sabiá a partir da minha própria janela. E assim, as coisas foram acontecendo. O céu foi-se tornando mais severo, mais azedo e mais ameaçador. Lá para as bandas de Goiás, começaram a aparecer relâmpagos frequentes sinal de que poderia chegar à capital uma tempestade em pouco tempo. Dito e feito. O primeiro sinal concreto chegou através dos trovões. Rapidamente a tempestade azedou. Dentro de mim, o pensamento que passou a me dominar era o cuidado e a preocupação com meu sabiá perfeito. O que vai acontecer com ele, perguntava a mim mesmo frente ao rigor da tempestade. Olhei para o sabiazinho lá encolhido no meio da árvore e percebi que ainda estava firme e seguro, bem aprumadinho nos interstícios do abacateiro acolhedor. Sosseguei.
A tempestade acelerou. Fui buscar meu binóculo para me certificar sobre os riscos que corria meu sabiá com aquele descalabro de chuva e trovões. Na primeira tentativa, verifiquei que o sabiazinho continuava lá encolhidinho sem que aparentemente a tempestade o tivesse atingido. Acionei de novo os binóculos, desta vez com lente de aumento. Sim. Era verdade. Lá estava o sabiazinho recolhido... Mais concretamente: lá estava a minha ilusão!... Agora pelo binóculo eu descobria que o vulto do sabiá escondido no abacateiro era apenas o desenho de uma larga folha desenhada aparentando um conjunto de bico, lombo e rabo. Uma ilusão ótica, certamente. E assim, era este o meu sabiazinho querido sobre o qual derramei tanto afeto...
O sabiazinho da minha ilusão. O sabiá querido de minha afeição, ilusório, mas que não cantou!
da minha ilusão. O sabiá querido de minha afeição, ilusório, mas que não cantou!
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