Tinha uma memória prodigiosa. Tanto que, decorridos muitos anos após seu passamento, alguns raros cidadãos de Jundiaí ainda fazem dessa lendária figura o objeto de louváveis comentários a essa virtude. Vestia-se só de negro, num traje comprido e em enfeites, como a simbolizar um símbolo da morte, sua fiel amiga de todo o sempre.
Há cerca de um ano, talvez, prometi a amigos relatar em conto a origem e a vida dessa mulher, de costumes verdadeiramente pitores
cos. Ia a todos os enterros, conhecesse ou não os falecidos.e não
faltava à s missas de sétimo dia encomendadas por intenção de suas
almas. Ao colher os demais dados sobre ela, tais foram os empeci
lhos, que me senti verdadeiramente frustrada e sem demora desisti,
resolvida a resgatar apenas em crónica a vida de Brilhanta. O fato ensinou-me que o que me falta é a vocação para pesquisadora biográfica de quem quer que seja, embora tenha a meu favor, hoje, as deficiências de locomoção que me impossibilitam trabalhos dessa ordem.
Mais de cem anos teria ela hoje e os parquíssimos informes obtidos aqui e ali, não só não mo permitem, como se afigura envolta em suaves e providenciais fumaças de confusão. Posso apenas imaginar que ela deveria ter sido suave menina, adolescente cheia de sonhos, tal como toda adolescente. Em claróes rápidos como o acender de um isqueiro, pequenas e remotas lembranças, de como.
ela realmente foi, de lugares que percorreu quando ainda se movia com os pés alados da infància, só pode calcular o precário pensa
mento..
Vejo-a então a caminho de algum evento, invà rià velmente pela rua do Rosário, a segunda via em importãncia da cidade, que conta
va, Ã época, menos de cinquenta mil habitantes. Desconheço qual seja seu rumo. Seria o rinque de patinação, do mesmo nome da via pública, então no auge da moda, ou seria a sessão vesperal do cine Politeama? O fato é que percebo seu corpo fremir no aguar
do de um fato que, sei, nunca acontecerá.
Seria o encontro com algum namorado? Será que ela, jamais, teve
um namorado? Acredito que nunca entrou num rinque de patina
çao, nem ao menos assistiu a alguma fita de cinema. É que a me
mória me leva até o povo que sapeava as entradas dos locais de de diversão, no meu próprio tempo. Vejo-a no seu, entre o aglome rado de pessoas, menina de alta modéstia e de baixa pretensão.
Informaram-me que, quando de mais idade, ela vivia em compa
nhia da irmã.. Qual era seu nome? O informante não soube respon
der. Apenas quie faziam juntas tricó destinado a criancinhas, sendo fácil visualizar o produto do artesanato de ambas: - sapatinhos, gor rinhos, luvinhas, .casaquinhos e mais objetos em diminutivo. O me
lhor da remuneração estava nos elogios da freguesia, senhoras
prenhes da melhor sociedade.
. Nessa fase, suponho. já poderiam ter alguns gastos, alguma extravagància em seu cotidiano. Salvo pequenas rusgas, cabíveis entre duas ir mãs solteironas, que sabiam ser inapelável o fato de ter de residirem juntas até o fim, pareciam ser uma pela outra,.boas
amigas, enfim. Deviam ter um rádio. Antes do advento da televisão,to
do brasileiro possuia um aparelho radiofónico. Quem sabe, a par com
as novelas ( ah, o Direito de Nascer!) deleitavam-lhes os ouvidos sambas, choros e modinhas da música popular brasileira e as can çonetas napolitanas de sua origem.
Residiam as manas em casa modesta, quase dependurada em barranco, ali no início da rua do Retiro, quase no largo de Santa Cruz. A rotina das duas devia ser a de duas solteironas,- o café juntas, pela manhã, depois a visita ã venda, que expunha os seus artigos, em sacas, Ã s portas de madeira, muito altas.
A mais velha, naturalmente, deveria enfrentar o fogão, objeto de prazer diário. Adorava quando o aroma dos temperos envolvia toda a casa, despertando nas duas a vontade antecipada de comer. Almoçavam em silêncio, de acordo com o que a mãe lhes ensinara.
A tarde era reservada para o tricó, depois vinha o jantar e eis termi
nado o dia, cujo ponto final era dado na rezam, celebrada na matriz, na hora do àngelus. Ouviam então o sonido dos sinos, anunciando a bênção e o término das orações. E é só.
De como Brilhanta se tornou a enciclpédia viva das datas de morte
de conhecidos e desconhecidos, é um mistério que ninguém soube decifrar. Se Deus lhe outorgou essa incríovel faculdade de memorizá
-las, e bem assim as da realizaçao das missas respectivas, porque sua mudez em relação a estranhos? Uma verz, encontrando-a na rua, indaguei-lhe sobre o falecimento de minha mãe. Sem hesitar, balbuciou: - 10 de janeiro de 1948.