Percorrendo distraidamente a pequena estante de livros aqui de casa, deparo-me com A rosa do Povo, livro de poemas de Drummond e, antes de folheá-lo, vem-me à memória um poema em especial: Caso do Vestido.
Era um vestido na parede, pendurado por um prego! Mas o vestido guardava um segredo, e esse segredo instigava as filhas: nossa mãe, o que é aquele vestido, naquele prego?
Bem queria a mãe que o vestido, ou talvez o prego (sórdido em sua estaticidade encravada) não existisse, ou existisse em outro lugar, não ali; e por que as filhas não ficam caladas, apenas aceitando a existência do vestido pendurado pelo prego? Será que não notam que seu pai já vem chegando? Ou será que são também sórdidas como aquele prego que segura o vestido? A ignorància, Ã s vezes, é indício de maldade escondida!
O vestido pertencera a uma moça que passara por ali e que as filhas não conheciam! A existência da moça, e o que ela fez, não é tão importante quanto a memória do que ocorreu! E a memória, não tenham dúvidas, não está só dentro de nós, não se contenta em apenas, vez ou outra, fazer o passado redivivo, com novas cores (mas a mesma dor): planta sinais fora da gente como aquele vestido pendurado naquele prego.
Sozinho, enquanto escrevo, sou capaz de ouvir a mulher falando baixo, perscrutando os passos do marido: Minhas filhas, boca presa. Vosso pai evém chegando.
Às filhas a negativa da mãe não fazia força: Nossa mãe, dizei depressa que vestido é esse vestido. Cedendo à tortura, a mãe conta da amante, revela o segredo de anos (as filhas eram de berço quando tudo se deu): o vestido percentera a uma amante! Era dona de longe, o pai enamorou-se, ficou transtornado, se afastou de tudo (para se aproximar dela), bebeu, brigou, bateu na mãe, abandonou a ela e à s filhas e a dona nem ligou.
A mãe, mais aflita, quase aos prantos, mesmo percebendo a proximação do marido (Minhas filhas, vosso pai chega ao pátio. Disfarcemos.) continua o doloroso relato porque as filhas a convencem de que o pai ainda não é presente: Nossa mãe, não escutamos pisar de pé no degrau. Até o não-chegar do marido é perversidade! Sofre a mãe não pelas perguntas das filhas, mas pela ausência do marido que não chegará até ela ter contado tudo, sofrido tudo novamente. Porque aquele que trai, ainda que uma vez apenas, trai tantas vezes quanto a memória do traído for capaz de lembrar! Só os que esquecem podem ser felizes!
Mas a dona não quis nada com o homem. Ele, então, implorou: daria dinheiro, carro, fazenda, ouro, beberia o sobejo, lamberia o sapato, e a nada a forasteira cedia! Diante da negativa o homem pediu à mulher que fosse ter com a dona e lhe rogasse o encontro carnal! Nesse ponto da narrativa, a mãe chora: Nossa mãe, por que chorais? Nosso lenço vos cedemos.
E ela foi ter com aquela mulher do demo! A dona se riu: Eu não amo teu marido...Mas posso ficar com ele se a senhora fizer gosto, só pra lhe satisfazer, não por mim, não quero homem.
Que loucura: entregar o marido à prostituta! E o que mais deve ter martirizado a mulher é o fato de que seu rogo foi determinante para o sim da pecadora. Mas não lhe saiu fácil: quis morrer, errou pelas ruas, teve febre terçã, perdeu os dentes, os olhos, costurou, lavou, fez doce, as mãos se escalavraram, os anéis se dispersaram, a corrente de ouro pagou conta de farmácia.
Depois disso, o marido sumiu pelo mundo. Mas o mundo é grande e pequeno. Volta a dona do demo, antes tão soberba, agora já sem nada, pobre, com uma trouxa na mão! Deixou o vestido, mas não deixou o marido: Dona...não te dou vosso marido, que não sei onde ele anda. Mas te dou este vestido, última peça de luxo que guardei como lembrança.
Aquela que havia levado o homem à loucura acabou por ele, também, se apaixonando, mas o homem, que só vira nela a beleza, desgostou-se da feiura que o tempo lhe trouxe. Foi a vez dela por ele de fazer todo tipo de humilhação! Nada adiantou: o homem sumira!
Agora ela trazia a roupa que recordava seu erro: de ofender dona casada. Deu o vestido e pediu o perdão. Nela não se via mais os olhos cintilantes, o sorriso gracioso, o colo de camélia, aquela cinturinha, os pezinhos calçados com sandálias de cetim: nada! A mulher palavra não dissera: apenas pendurou o vestido na parede..
Logo depois, vem o marido, que, chegando, apenas disse: põe mais um prato na mesa. Sentou-se, comeu, limpou o suor, era o mesmo homem.....e nem estava mais velho.
O barulho de comida na boca do marido era um acalanto, dava um sentimento de que tudo foi um sonho, vestido não há.....nem nada. Minhas filhas, eis que ouço vosso pai subindo a escada.
Desisto de abrir o livor: minha memória já o releu!
Alexandre Palhares - São José, 16 de novembro de 2001.