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Cronicas-->DENTE DE LEITE -- 30/11/2001 - 09:11 (LUIZ HIDEO SAGA) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Enfim, lá estava eu, naquela pequena sala de espera do consultório dentário. Cinco anos já, sem ver o dentista. Isso talvez pudesse ser considerado uma heresia por aqueles que prezam por sua perfeita dentição, mas afinal de contas, quem pode e tem tempo para isso hoje em dia? O emprego constantemente ameaçado; a pressão dos clientes, do chefe; as contas em atraso; o estresse de sempre. E para complicar mais a situação, o terrorismo andando à solta pelo mundo, o risco de guerra iminente. Bem, se é para vivenciar o final dos tempos, que seja com os dentes perfeitos: pensei. A sala de espera tinha um ar de simplicidade e despojamento: uma cadeira de mogno estofada em cada canto, uma pequena estante com alguns enfeites orientais, à frente do sofá em que estava sentado. O sofá era daqueles macios, que convidavam ao relax. Cairia no sono, com certeza, não fosse o zunir agudo da broca, que vinha da sala da doutora. Lembrava-me que nunca houvera me consultado com uma dentista. Quem sabe houvesse aí um toque sutil da delicadeza feminina no tratamento, para contrastar com a rudeza implacável da broca. -O senhor pode entrar, avisou-me a secretária. A doutora tinha uma leve semelhança com a Cássia Eller, o que desfez a minha expectativa inicial, mas enfim, aquele primeiro round seria apenas um simples orçamento. Após as saudações iniciais de praxe, sentei-me confortavelmente à cadeira, com o babador de guardanapo devidamente colocado pela auxiliar. -E então? O que vai ser?, perguntou a doutora. Nesse instante, senti-me como num salão de barbeiro, mas não hesitei, e respondi tal qual um chefão da máfia diria a um guarda-costas : -Faça o que tem que ser feito. E aí, toda aquela investigação minuciosa teve início: duas cáries aqui, uma restauração acolá, jatinho de ar para observar melhor, radiografia de um molar. Na sala havia som ambiente, sintonizado numa daquelas rádios que só tocavam flash-back. A dentista levava o trabalho em alto-astral e cantarolava um antigo sucesso dos Carpenters, enquanto trabalhava: Only yesterday, when I was sad , and I was lonely... nã..nã...na..na....e rosnava o restante, talvez por não saber a letra. De repente disse: -Ué? Por quê essa lacuna aqui?, molares, pré-molares, incisivo... Não falta nenhum dente, mas mesmo assim tem esse janelão. O que aconteceu, hein? Respondi-lhe, com alguma dificuldade pelos algodões na boca, que fazia já muito tempo e que não lembrava. -Isso só pode ser dente de leite temporão, que demorou para cair e tomou espaço dos dentes permanentes, observou ela, com ar interrogativo. Há tempos não ouvia aquela palavra composta: dente de leite. A época em que os tinha fazia-se já remota, mas os sentimentos felizes da infància nunca se apagam. Eram tempos difíceis em casa, mas meu pai não voltava do trabalho sem trazer um punhado de balas e doces. Minha mãe trabalhava o dia inteiro e eu brincava o tempo todo, no quintal ou na rua de terra batida: pipas, pião, bola. À tarde não perdia um episódio do Batman e Robin na TV à válvula da vizinha; naquele tempo pouca gente tinha isso em casa. Às vezes saía com meu tios, que faziam entregas para bares e botecos, de Kombi. Aquilo era uma festa, pois além do passeio, sempre rendia um sorvete na volta. Que bons tempos aqueles! A doutora continuava com sua tarefa: jato de ar aqui, jato de água acolá, cutuca daqui, cutuca de lá... Naquela época minhas irmãs curtiam música em inglês de artistas famosos, como Uncle Jack ou Mark Davis, que no fundo eram a mesma pessoa, a que hoje conhecemos como Fábio Júnior (o fenómeno da globalização já se fazia presente). Bem, isso não tinha a menor importància, nem para elas e muito menos para mim. Também descobri, posteriormente, a vocação idealista da juventude daqueles tempos: a geração de muitas idéias na cabeça, rebelde e sonhadora a um só fólego. Época de passeatas, cassetete e casco de cavalo em cima dos estudantes, de uma gente que opunha resistência ao tal poder militar constituído. Não hesitaria, contudo, em trocar o hoje pelo ontem, talvez porque a minha tenra idade não permitisse dicernir sobre tais fatos. Aliás, como era boa a ingenuidade das crianças daqueles tempos!. E por falar em saudosismo, lembrei do Dr. Artur. Só Deus sabia qual era sua especialidade, mas sabia-se que atacava de médico, dentista e oftalmologista. Até brigas conjugais resolvia. Ninguém saía de seu consultório sem uma solução, seja ela um óculos, uma dentadura, uma aspirina ou a paz matrimonial de volta.
A doutora, por fim, terminara o seu esquadrinhamento: -Bem, Senhor. São treze restaurações de amálgamas, três novas cáries e duas próteses, além das radiografias. Mas afinal, com que nome será que eu coloco a prótese desse janelão? E eu, sem titubear, disse:
-Põe aí: DENTE DE LEITE. A mulher olhou para mim, como se não tivesse escutado e depois baixou a cabeça, anotando alguma coisa no papel.
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