Dias atrás o meu gato apareceu em casa com um pardal
entre os dentes. Não foi a primeira e, com certeza,
não será a última vez que ele conseguirá tal proeza.
À nenhum outro ser vivo sobre a Terra, a natureza
concede o direito de arrebatar um pássaro em pleno
vóo. Nós, os seres racionais, se quisermos abater um
desses pequenos animaizinhos, precisaremos recorrer Ã
recursos não muito dignos, como a pedra de atiradeira
ou o chumbinho das espingardas de pressão.
Os gatos,ao contrário, são capazes de desafiar as leis
da física num único salto; precisos e elegantes,
transcrevem no espaço vazio, num piscar de olhos, o
trajeto de uma flecha certeira - do alto do muro para
o pássaro. E com que fidalguia tornam ao chão! A queda
de uma pluma não seria mais delicada.
Não raro os gatos costumam exibir-se aos donos. Ficam
à distància, com a caça a se debater dentro da boca,
olhando-nos com certo desdém, entre vaidosos e
indiferentes, como convém a todos os seres que são
livres. Estão, no fundo, a zombar de nossa
incapacidade atlética. Se pudessem, de certo, diriam:
"vocês são capazes de criar a bomba atómica, mas não
conseguem apanhar um pássaro em pleno vóo".
Da beleza à agilidade, os gatos possuem quase todas
as virtudes que faltam aos outros animais. A única dor
do gato é não poder voar. O ódio mortal que os gatos
sentem pelos pássaros vem, possivelmente, deste único
detalhe.
Ambos são os seres mais livres do planeta: aos gatos
tudo basta porque nada importa, e este falso
domesticável ( porque ninguém pode aprisionar a
vontade do gato ), nos paga o afago e a comida com sua
soturna e discreta beleza, esparramada pelo sofá da
sala como parte da decoração. Já os pássaros, nem é
preciso dizer, atingiram o estágio de liberdade mais
elevado que existe: a capacidade do vóo.
Voar é um dos maiores sonhos do homem, desde os seus
primórdios. Mas este é, sobretudo, o sonho dos gatos.
Durante as madrugadas, ficam aos telhados, mirando a
imensidão celeste, como se num passado distante,
houvessem sido íntimos das estrelas. Pudessem voar e
nossas insónias noturnas seriam mais suportáveis; as
noites de vigília, Ã janela, estariam preenchidas com
a mais nobre celebração da liberdade: o espetáculo do
vóo! De repente: "Olha ali, lá se vai o Tamborim,
copulando em pleno ar!".
É claro que fico penalizado com os pardais que têm a
infelicidade de cair nas garras do meu gato. Quando
chego a tempo de salvá-los da dentada final, quase
sempre o faço. Mas posso compreender a luta de classes
silenciosa que se desenrola desde que gatos e pássaros
se viram pela primeira vez. É o eterno conflito dos
libertários, sendo que o gato é mais um intelectual da
liberdade, por sua postura contemplativa e movimentos
matemáticos; o pássaro, vejo-o como um artista da
liberdade, que risca o céu com a tinta da própria
natureza, sem a beleza e a inteligência felina, mas
também sem sua arrogància. Ao contrário do gato, o
pássaro não precisa desejar mais nada.
Depois de comer todo o pardal, o gato veio se
aconchegar aos meus pés. Orgulhoso de seu crime,
lambeu os beiços e espalhou os músculos ao sol,
ronronando de satisfação. E eu pude notar em seus
olhos amarelos, dois pássaros ariscos buscando o céu
infinito.