Um telefonema inquietante pela manhã: uma moça. Havia finalmente lido um livro que lhe dei há quase um ano atrás. Dei-lhe o livro por achá-la bela, na esperança de que o livro a impressionasse e fizesse com que ela retornasse o contato. Autografei-o, entre-guei-o mas quando fui abraçá-la, verdade que um tanto afoito, ela afastou o bumbum para trás um tanto jocosamente, deixando-me constrangido. Pro-meteu que me mandaria um dos livros no qual havia sua participação, mas não mandou nem escreveu nem ligou. Pensei: perdi o livro e a leitora. Aliás, coisa comum no escritor é o falso prestígio. Depois do lan-çamento, o retorno financeiro é quase nenhum e ven-der o livro as pessoas não é reconfortante. E o escri-tor, se não tiver bons amigos, outro modo de ganhar a vida ou o apoio dos parentes, fica, literalmente, na sarjeta.
E a moça começa a falar entusiasticamente so-bre poesia. Penso que até hoje a poesia só me trouxe dissabores, constrangimentos e a ilha em que vivo, pelo simples fato de que poesia deve ser assunto de parcela ínfima da humanidade. E eu já a teria aban-donado há muito tempo, se eu pudesse. E de certa maneira, devo. O que não posso abandonar (nem po-eta algum), é uma maneira de ser peculiar que agrava o isolamento psicológico e a mágoa de não poder ser gente como a gente é. Se não podemos falar, se nossa expressão não interessa a fúria humana e mercadoló-gica, preferimos o nosso mais nobre silencio e a nossa essencialidade. Que nos roubem a expressão, mas não a alma, porque a poesia é a mais alta expressão de humanidade que existe, embora a própria huma-nidade parece estar se esquecendo do seu sentido.
E a moça vai falando e sou todo ouvidos. Quer que eu venda meus livros, que eu apareça. Só que não tenho muito jeito para aparecer nem para propagan-dear a importància da minha obra, que não é pouca coisa posto que de certa maneira o reconhecimento passa pela nossa sobrevivência. Mas a generosidade humana não é notável, e quando as pessoas percebem a aflição do escritor ele se encontra em maus lençóis. Sabe aquele teu vizinho que te conhece a mais de dé-cada?, ele não quer saber do teu livro. A dona da pa-daria? Também não. O teu próprio colega está "duro" e você está perdido, José.
A moça percebe meu desànimo e diz que é porque estou sem musa. Dá vontade mandar ela ocu-par o posto, desocupado a mais tempo do que eu gostaria. Mas sou muito sensível à s moças e tomo muito cuidado com elas. Por causa das moças é que sou melancólico e magoado. Vejo nas moças o tanto que posso dar de carinho e delicadeza, mas elas pas-sam como que pisando no meu coração e vão embora, nem sequer adivinhando o céu que há em mim. E fico em dúvida se as moças são do céu ou é apenas a ima-gem delas que inspiram a ilusão do transporte.
O concreto é que o telefonema da moça me dei-xou mexido. O que pode querer a moça comigo? Que graça tenho eu para ela? Que pode ela trazer-me de permanente? Olha, moça, vou te contar um segredo profundo sobre os poetas solitários, desses que vivem à margem, calados, nas ilhas, longe dos sórdidos jor-nais e barulhos do mundo. É que esses seres não são mais tanto do momento quanto são da eternidade, e só saem da sua toca quando muito cativados ou leva-dos pelo destino, seja pelas mãos de um anjo, de um traidor ou de uma moça.
Portanto, moça, veja lá o que você traz pra mim, se doce ou travessuras. É que minha ilha é bela e sossegada, minhas paisagens sagradas e meu cora-ção já esqueceram. Conquistei o silêncio, não me ve-nha com diabruras.