Estendido no chão, aquele pobre estava coberto com jornais. Do lado uma garrafa de pinga: Será que bebia para esquecer os problemas? Ou era um alcoólatra? Pode ser os dois... já pode até ter morrido de cirrose. Isso já faz tanto tempo. Na minha opinião ele bebia porque não tinha nada melhor para fazer. À uma certa altura da vida exigir ànimo e força de vontade chega a ser um crime. Que fique ele com a sua marvada cachaça porque lições de moral pouco ou nada resolveriam.
Mas não estavam sozinhos. Entre ele e a pinga havia também uma bíblia. Novas interrogações... O que poderia um homem naquele estado fazer com uma bíblia? Sinceramente o que me parece mais razoável é que alguma beata o tentara regenerar dando-lhe à s mãos o livro sagrado. Mas aí também eu estaria subestimando o homem por puro preconceito. Vai que ali estava um homem religioso e crente em Deus como poucos. Crente de coração, que o amasse o respeitasse e , até, o compreendesse ao ponto de ler suas palavras e suas histórias como se o tivesse ali ao pé do ouvido, pessoalmente, numa agradável conversa sobre os tempos passados que guardam seus mistérios e tantas respostas.
Mas por falar em respostas, quem se atreveria a responder o que fazia aquela bíblia ao lado do pinguço? Mas tem que ser uma resposta precisa e confiante. Eu quero saber quem se atreve a dar esta resposta. Ele lia ou não? Se lia, entendia? Comprou, ganhou, achou? Gostava ou zombava?
Ficou difícil? Então o melhor ainda está por vir. Não era só o homem a pinga e a bíblia que compunham aquele cenário ao ar livre. Pasmem, mas ainda falta: Os Irmãos Karamazovi também estavam lá, todos os três. Para quem não leu esta obra, basta falar que este livro tem em média 500 páginas e é um belíssimo e divertido clássico russo de, aproximadamente, 1875, escrito por Dostoiévski.
Bem, se não pude conjeturar à respeito da bíblia... Como poderia um Dostoiévski desta categoria estar perdido na mente conturbada de um provável bêbado, que provavelmente preferia falar a ler e que talvez nem soubesse da importància daquela obra e que... Seria ele um professor de história que acabara na miséria, mas que não abria mão das suas duas obras preferidas? Seria um grande entendedor da alma humana? Admiraria Jesus e Alioche, ambos devotos de Deus?
Existe algo que fica claro nisso tudo: há muita coisa a se descobrir sobre a mente humana e existe algo a se descobrir sobre uma cena como aquela. Não é banal e não é anormal, é apenas complicado porque minha visão burguesa jamais admitiria um sujeito pobre, mal vestido, dormindo nas ruas, tão bem acompanhado. E na verdade, o que eu queria era poder conversar dez minutos com aquele cara e matar minha curiosidade e imortalizar aquele momento poético que eu nunca vi. Me foi apenas contado por alguém.
Eu não vi, mas nunca pude esquecer. E imortalizei aquela cena, que não sei exatamente como era, em poesia. E aquele homem se tornou alguém especial entre a multidão, porque prefiro crer que atrás de todas as minha perguntas, se esconde uma história como poucas, uma história que nenhum autor seria capaz de criar e que nenhum homem poderia inventar.