A moça sentada ao meu lado no ónibus disse que havia um cabelo branco enroscado em minha barba. Càndida e delicadamente ela retirou o incómodo pêlo e sorriu como as mães sorriem.
Um homem marcado pelo tempo contava uma história triste junto ao cobrador. Uma história que tinha algo a ver com o seu filho doente acho. Pediu dinheiro. Eu tinha setenta e cinco centavos no meu bolso e quando ele passou por mim, fingi estar compenetrado no livro em minhas mãos. A moça ao meu lado alcançou-lhe uma nota de um, mas não lhe deu o mesmo sorriso.
Baixei o livro, olhei ao redor. Rostos amargos e sem luz, cada um metido em sua vida insignificante. Como pagar o aluguel, onde arrumar emprego, pra onde ir, o que dizer, etc. etc. etc. Simplesmente não aguento. Tenho náuseas quanto a mediocridade.
Eu também estava com minha viajem em curso. Acho que foi Scarmeta que disse "mudei para Paris, mas trouxe meus fantasmas comigo". Eu andava sempre com meus fantasmas, procurava não me submeter a eles mas sabia que estavam constantemente por perto. Lembrei das palavras de minha professora ginasial que dizia ser a família uma célula importante da sociedade. Imaginei que um coletivo público era ainda mais enriquecedor como amostragem. Dois bancos à minha frente havia um homicida que passara a viajem inteira duvidando que alguém achasse o corpo carbonizado de sua vítima. Da bancada diagonal vi um padre sádico que adorava queimar sua virilha com cera quente. Logo atrás de mim uma mulher que traía seu marido todas as tardes com um homem que batera à sua porta tempos atrás para oferecer-lhe acesso grátis à internet. Ao seu lado um garoto que tivera sua primeira experiência com cocaína duas noites antes e sonhava ver-se novamente entorpecido pelo milagre alvo.
O homem que pedia dinheiro para o tratamento de seu filho, ou seja lá o que fosse, desceu num lugar que me pareceu ermo. Tive vontade de pedir que tomasse cuidado, ou desejar boa sorte, diabo, tenho sentimentos também.
O motorista parecia infeliz, depois pareceu-me enfezado, ainda mais quando abriu a pronta para que um pedófilo entrasse. Tenho certeza que ele reparou no rosto marcada pelas mãos de pequenas crianças se contorcendo de dor.
A moça ao meu lado tocou-me. Fitei-a. Pediu perdão, que precisava saltar. Pensei em dizer-lhe coisas elegantes, "fique aí mesmo onde está e segure firme a minha mão. Não faça nada, apenas segure a minha mão e sorria. Deixe que eu afague os teus cabelos e me sinta vivo. Pelo menos ainda um pouco mais".
A moça se foi. Eu segui a viajem com o homicida, o sádico, a infiel, o junkie e o pedófilo que agora sentara ao meu lado. Tive vontade de convidá-los à uma rodada no bar. Por minha conta.