Naquela manhã, em plena primavera, observou que o velho já fizera a curva da Praça do Cruzeiro. Correu para a cozinha e catou os restos de pão que era costume sobrarem da véspera. Desconhecia o destino certo de sua doação, apenas lhe fora dito por alguém que o homem alimentava porcos com o pão umedecido na lavagem. Outros lhe afirmaram que o homem comia pão velho para disfarçar a fome e até que o dava para seu companheiro de andanças. Como há controvérsia em tudo neste mundo, tal assim a questão da morada e de quem vivia com ele, Ilda, sem ligar para os comentários, continuou no que considerava boa ação.
Uns juravam que ele era celibatário, outros que sustentava mulher e filho defi ciente, outros ainda que era largado de uma viúva, de malíssimo gênio. Num só ponto toda a vizinhança de Ilda se mantinha unànime, o barraco do pobre ficava lá pelas bandas do Horto Florestal, e era de pobre mesmo, caindo aos pedaços.
Tinha um amigo, o único, ao que parecia Era um canino imundo, feito caçamba da corda que ele representava, um fiel acompanhante nas maratonas através da cidade. O animal era feio, coitado! A pelagem, áspera e revolta, conservava a cor da terra em que com frequência se espojava e jamais sentira o refrigério gostoso de um jato d´ãgua. Era sujo, sujo, exceto para o dono, que em rompantes de carinho, tomava-o ao colo, beijando-o até.
Ilda separava os tomates para o molho, adiantando o expediente para o almoço, enquanto o homem não chegava. Era um pedinte, é certo, mas não como qualquer outro. Pedia-lhe só, o quê? Apenas pão dormido. Se não o desse, vez ou outra, o aproveitava, em migas prèviamente amorenadas no forno, como torradas, para acompanharem a merenda da tarde. Ou então, as fatias eram raladas e passadas em peneira fina, resultando em farinha de rosca, imprescindível na culinária à milanesa. Comprada em padaria, assemelhava-ase a areia grossa. E o preço, faça-me o favor!
Ilda sentia o orgulho mordiscar-lhe o peito, toda vez que sua incomparável farinha, guardada em frasco hermèticamente fechado, era tomada de empréstimo por vizinha imprevidente. Mas qual a razão de estar-se lembrando disso agora? O que mais queria era relembrar a primeira vez em que acudira o pobre, o que não conseguia. Vinha já, por um punhado de anos, satisfazendo o apetite dos infelizes da família. Ou, quem sabe, do próprio cachorro, vá lá, que um ajutório, dado de coração, não faz falta nenhuma prá gente.
Num átimo Ilda se lembrou do Dick, pastor alemão muito cheio de nove horas,cuja malandragem e carinho lhe apertavam ainda o peito, tanto tempo após sua morte. Por dois anos preenchera sua vida, vazia com a ausência de filhos. Amigão dos gatos, cedera a própria casinha para a parição de quatro filhotes da branca Bichaninha. E tempos depois, não alarmava as pessoas que passavam diante da casa, ao sacudir pelo pescoço, com a enorme dentuça, os gatinhos brincalhões? E as portas que o Dick abria, de fora para dentro, Ã simples imitação de um miado, por medo de que os felinos lhe usurpassem os favores de Anselmo, seu marido?
E havia mais, a vez em que Elaine, uma vizinha, entrara sem bater pela casa a dentro e inadvertidamente a tocara; Com ciúme o cão abrira a medonha bocarra e a detivea, segurando-a pelo braço, numa falsa mordida. Ah, as lembranças. Ultrapassou-as a morte do Dick. Noite alta, madrugada já, permanecera o Anselmo no jardim, ao lado do canteiro de azaléas, local escolhido pelo cão para a lenta agonia.
Pois bem, o seu protegido, o velhinho que acabara de deixar, agora, o largo do Cruzeiro e se vinha encaminhando em direção à casa, notara, logo no dia seguinte, a ausência do animal. Mostrou-se penalizado com a angústia de Ilda e, pasmem, ofereceu-lhe o próprio cão, companheiro diário nas caminhadas. Isso mesmo, quis dar-lhe o mestiço , de raça indefinida, encanecido pela poeira de não se sabe quantas ruas, para, com sacrifício próprio, minorar a dor alheia.
-"Não quero", foi a frase mais repetida que o homem ouviu. Razões apresentadas aos montes foram infrutíferas. Não queria nunca saber de cachorro algum, mesmo porque nenhum outro poderia substituir o titular na preferência e no afeto que lhe nutriam. Além do mais, o animal oferecido, por ser cria do dono, talvez jamais se acostumasse com o novo ambiente, a nova casa. Usou de todos os argumentos; todos foram vãos.
O homem mostrava-se sinceramente condoído A todas as negativas, ele abusava de novas e plausíveis razões. Era irredutível. em seu propósito. Tanto que ela acabou cedendo, mesmo sem prévia consulta ao marido. Que trouxesse o bendito animal, chamado Pancho, e estava acabado! Esse consentimento foi o início de uma série de problemas que ninguém, em tempo algum, lhe acarretara.
Pancho era elétrico, nunca se posicionava em total descanso. Talvez por saudade do dono, qualquer descuido e pronto! Lá se ia ele em retorno ao lar antigo. Vi nha o velho e o devolvia, após comprida peroração. Ficava dois ou três dias, até desaparecer de novo, o que redundava em quase diária discussão entre o casal. Todo veículo que ousasse passar nos seus domínios era alvo de corridas paralelas e de saltos e latidos incessantes. Bradava feito um desesperado, quem sabe se porque se ressentisse do tráfego, muito mais intenso na região do que na zona rural de onde adviera. Até que seu dia chegou. Morreu atropelado por um caminhão, conforme o dito por testemunhas. E previsto como o fato mais natural, por Ilda. Na próxima vez em que o velhote passou, muito a contragosto comunicou-lhe o fato. Ele o recebeu impassìvelmente, era o destino.
Eis que um bater de palmas no portão lhe interrompe as divagações. É o velho, calcula. Vem buscar o seu pão de cada dia. Enxuga as mãos no avental e prepara-se para deixar a cozinha. Ao chegar à porta, depara com o homem,cambaleante, seguindo além do portão, pela calçada. Vai em passos trópegos, incertos, sem se deter, como era hábito. Caminhando, caminhando, uma cor púrpura envolvendo-lhe a cabeça, as orelhas, o pescoço. Até que o corpo, dobrado em dois, quem sabe pela dor, quem sabe inconscientemente, ruiu, desabou todinho no calçamento, num só movimento. Atónita, so então reagiu Receosa de pensar no pior, deu uns passos em direção à entrada da casa. Será que ele morreu, Deus do céu? Parecia gozar de boa saúde, nos sessenta e tantos anos que aparentava.
Espia-o. Continua estendido na calçada, bem em frente à mureta que cerca a residência. Olha com mais cuidado e vê um filete de sangue fluindo não sabe se do nariz ou do ouvido. Corre ao telefone, pede ao hospital uma ambulància, Não, informam, não podemos fazer nada, um dos nossos veículos está quebrado, os outros saíram em serviço de remoção de pacientes. Por que não tenta.outro hospital?
Vai à janela,. O corpo continua inerme, acha que o tempo está voando demais. Novo telefonema, desta vez dirigido à Guarda Civil. Nova alegação, a ambulància está transportando um preso em estado grave para o São Vicente. Que fazer, Senhor? Tenta o Corpo de Bombeiros. Nada, só dá ocupado. Último recurso, recorrer à Polícia. Linha desocupada, Deus seja louvado!. Atendem. Explica a situação.¨- Pois não, minha senhora. Mandaremos uma viatura imediatamente. A espera foi longa, como toda espera. Quando a viatura chegou, dezenas de rostos curiosos e consternados rodeavam o corpo imóvel.
Um absurdo silêncio envolvia a todos, como se aguardassem a explicação que ninguém podia dar. Então o necessário foi providenciado. Verificado o óbito, dois guardas retiraram do veículo a maca que não fora providencial. E, em três segundos talvez, não mais que isso, colocaram o cadáver no veículo e encerraram mais uma vida. "Vai para o IML", - alguém disse. "E o atestado de óbito?" Pergunta outro. Ninguém responde e Ilda nem sequer espera pela partida. Entra em casa, deixando para trás toda a algaravia que lhe martela os ouvidos. É que procura um canto para por em ordem seus sentimentos.
Encontra a cozinha, onde, literalmente cai sobre uma cadeira. Sobre a mesa, legumes, frutas, um pacote se macarrão de semolina, muitos tomates, cuja vermelhidão lhe causou leve náusea. Tudo ainda por fazer, o almóço a aprontar. Uma lágrima sem pejo lhe corre pela face, atrevidamente. Ele era um homem simples, de bons sentimentos. Agora, Ilda se desobrigará de dar as sobras de pão que amanhecerem em sua casa.
Fere-lhe a alma um vago sentimento de revolta. Nunca mais haverá de dar migalha de pão a quem quer que seja. Nunca mais, soluça; e, com toda ênfase, parafraseia o bardo e exclama, dramatizando, em voz alta: - "Nunca mais, nunca mais!"