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Cronicas-->A LAMA E OS TRIBUNAIS -- 20/08/2002 - 17:36 (Airo Zamoner) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Os jornais noticiaram a semana toda. A cerimónia de posse dos juízes seria um acontecimento marcante. O tilintar de cristais, o champanhe importado, as finíssimas vestes, as iguarias abundantes e, mais que tudo, a alegria, os sorrisos, a felicidade vazando pelos poros perfumados com aromas franceses de primeira linha.
Aderbal estava entre eles. Era cumprimentado efusivamente. Estava entrando para uma confraria única. Uma vez cá dentro, sua vida, de sua família, seria um mar de rosas para sempre. Jamais faltaria nada. Jamais sofreria qualquer privação. Teria para si e para os seus, todas as benesses de um poder independente. Ninguém ousaria jamais colocar em dúvida suas ações boas ou ruins, competentes ou incompetentes, eivadas de preguiça ou de esforço. A partir de hoje, todos seus atos teriam sempre, fossem quais fossem, nobres justificativas que o povo juridicamente ignorante, não estaria jamais a altura de compreender...
Aderbal passeava entre os risonhos convivas. Sua expressão, contudo, não combinava com as demais. Estava sisudo. Quase triste. Escondia um ar de ligeiro e leve sarcasmo.
Sua decisão de fazer Direito fora tomada ao longo de um processo familiar que roubara a vida de seu pai. Assistira-o no momento da morte. Ouvira suas palavras repetidas ao longo dos últimos oito anos. "Como está o processo, filho?". Aos sessenta anos, fora vítima de erro administrativo do estabelecimento bancário. Quando recebeu pelos correios o aviso de que estava sujeito a perder seus bens por falta de pagamento, sorriu. Pensou: "Esses bancos vivem se enganando. Logo tudo se esclarece.". Pelo sim, pelo não, foi conferir seus papéis. Tudo estava em ordem. Ligou para o Banco e percorreu os labirintos burocráticos, até ser tranquilizado por uma atendente. Os dias se passaram. Intempestivamente recebeu, certa vez, um oficial de justiça, confiscando seu bem mais precioso. O veículo que servia para seus negócios. De nada adiantou espernear, protestar, mostrar documentos, recibos. Ainda assim, foi tranquilizado pela esposa, por Aderbal. "Logo tudo se esclarece. Vamos confiar na justiça". E os anos se passaram. Antes do último suspiro - Aderbal não esquece. Não consegue esquecer - perguntava mais uma vez como andava o processo.
A jovem advogada sofria com ele. Chorava com a família. Revoltava-se a cada novo dia perdido na indiferença prepotente dos tribunais. Ao acúmulo de processos, respondiam com um ano de dez meses; uma semana de cinco dias; um dia de poucas horas. Processos e mortes traziam para a alma da advogada jovem, sedenta de justiça, a amargura da impotência. A vida do seu cliente se esgotando e os juízes e sua arcaica burocracia, indiferentes como sempre. Gozando seus privilégios pessoais de segurança e farta remuneração, como se direito fosse. As desculpas? São tantas! Entraram nessa redoma, ouvindo-as de seus velhos colegas velhos. Muito trabalho! Poucos juízes! Pronto! A consciência era aplacada e dormiam felizes, enrolados na sebenta toga protetora. Lavá-la? Nem pensar. Poderá macular a Excelência!
Agora Aderbal toma posse. É juiz e olha para seus colegas. Vai produzir um furor nesta caverna inexpugnável das Excelências, sem excelência alguma em suas missões. O tribunal faz questão da mesura, do respeito da nomenclatura. Faz questão da toga que se usa como símbolo da pureza, da justiça. Mas seus sócios são podres ou inocentes imbecilizados pela história, imune aos progressos de fora.
Uma certa raiva cintila nos olhos de Aderbal no meio da festa. Os risos, os projetos pessoais perpassando conversas, se mesclam com o último suspiro do pai injustiçado. Morto pelos juízes ineptos, folgados, em férias, tomando o chá das três, rindo soltos no emaranhado dos processos que não os incomodam. A conversa flui macia: "Eu estou julgando processos de cinco anos atrás!". E o outro responde orgulhoso: "Ganhei! Estou com os de oito anos!" E as risadas ecoam pela festa risonha. Cada processo, uma vida em jogo. E daí? Eles que esperem. Eles que morram. O importante é que a toga nos protege. Podemos ser preguiçosos e incompetentes, sem que ninguém desconfie. Estamos seguros aqui. Ninguém nos incomoda.
Aderbal, entretanto, furou a couraça. Entrou na caverna dos Alis Babás modernos que solapam esperanças, espezinham vidas, muitas vezes sem saber o que estão fazendo. Agora, ali naquele antro, Aderbal pronunciou seu Abrakadabra e está na festa de posse. Suas lágrimas correm por dentro, escondidas. Seu riso sarcástico se espalha pela sala riquíssima. No outro lado, Marlene o admira. Também passou. Também tem motivos para estar ali.
Os Aderbais e as Marlenes estão chegando. Os privilégios cristalizados ao longo dos anos cartoriais estão prestes a ruir. Eles não se lembram das mortes que provocaram e que continuam a provocar, imbecilizados, despreparados, desatualizados da vida, mas sábios de leis, de doutrinas. Pensam estar seguros em seus pedestais, aparentemente livres de suas omissões criminosas. Esquecem que eles próprios estão construindo seus tribunais em alicerce de barro.

© Airo Zamoner
airo@cepede.com.br
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