Quantas histórias inventei ao passar pela sombra daquele gato postado no alto da casa!
Toda tarde, cansado do trabalho na joalharia, prestes a me aposentar, cruzava os quatorze quarteirões que levavam a minha casa, não vendo a hora de observar aquele semblante impassível, aquela cabeça erguida, aquele orgulho de pedra.
Jamais vi o animal trepar no telhado, nunca passei por lá sem vê-lo. Em dias de grande chuva, lá estava ele equilibrando-se, indiferente aos grossos pingos, como não se deixava perturbar pelos raios de sol dos dias claros.
Coloquei palavras em sua boca:
- Ó passante infiel, por que não te afastas desta calçada e não procuras os teus?
Em outra ocasião:
- Queres ouvir a minha súplica outra vez? Pois irás arrepender-te de haver nascido.
Mais adiante:
- Querido irmão sofredor, por que não sobes até aqui e te colocas ao meu lado, para que tua sombra se estenda ao lado da minha?
Em casa, a imagem do gato ainda se guardava em minha memória e eu estendia os temas, pondo peripécias em enredos absurdos, como no dia em que levei o gato a dormir comigo, aos pés da cama, ronronando e agradecido, sonhando juntos a felicidade de existir.
Minha mulher não sabia nada disso. Não lhe revelei aquele segredo até que me surpreendi sozinho. A morte a levou num dia em que eu passara junto ao gato e ele não estava. Cheguei em casa estranhando a ausência e encontrei o cadáver da esposa atravessado na sala. Morrera do coração.
Por uns dias não passei por debaixo da marquise. Evitava o feitiço daquele olhar tremendo. Mas o tempo passa e dá voltas a vida, de sorte que tive de volver ao trabalho. O patrão me ofereceu sociedade, já que estava desejoso de aposentar-se e não queria perder os meus valiosos préstimos. Não tinha ambições, recusei o convite, tendo indicado um dos empregados mais diligentes e confiáveis para atendê-lo. Tudo acertado, o novo patrão me despediu, fazendo-me recolher os direitos previdenciários da falta da justa causa, aconselhando-me a que me aposentasse, já que minha vista, tão falha à distància, começava a claudicar até com a ajuda das lupas.
Naquele dia, saí mais cedo. Surpreenderia o gato ainda debruçado sobre os pedestres? À medida que me aproximava da casa, sentia o coração bater mais rápido. A recordação de que não estivera ali naquele dia de luto somente então me assaltou. Teria abandonado o transeunte certo por algum amor incerto?
Quando cheguei junto à sombra, lá estava o vulto querido a acenar-me com a estabilidade das coisas. Notei, porém, que as orelhas se erguiam como a desafiar a argúcia do observador. Seria o efeito do sol mais alto? Temi olhar para cima.
- Tu aí em baixo, vais passar sem sorrir para mim?
Era o convite que me faltava. Ergui a cabeça, já com os lábios armados para retribuir a alegria com que me recepcionava, quando quedei estático e frio. Estava ali um cão tão orgulhoso e imponente quanto o gato que se fora. Teria este espantado aquele? Que lutas misteriosas teriam ocorrido longe de minha vista?
Pela primeira vez ousei encostar um caixote ao muro, onde subi para espiar o terreno vazio. Procurava pelo bichano escorraçado do pedestal.
Realmente, lá estava ele encostado na parede, a cabeça ao lado do corpo, sem mancha de sangue, sem queixa e sem arrogància, pobre figura patética, arrebentada por um raio em meio à tempestade. Era de metal sua estrutura e ele não aguentou o embate de não sei quantos graus centígrados da faísca mortífera.
Estava despedido. Não tive oportunidade de inventar histórias a respeito do cachorro...