Acordo assustado com um barulho na rua. Parece uma bomba, um tiro ou uma porta arrombada. Olho para o relógio: duas horas da manhã! Perco o sono, enquanto as hipóteses vão desfilando no meu pensamento. Um acidente de carro? Um curto-circuito na rede elétrica? Pouco provável. Na verdade, pelo som que ouvi, não há muitas hipóteses além das três primeiras...
Mal retomo o sono e pumba! Outro estrondo. Agora, a companheira ao meu lado também acorda e me chama, assustada. Tudo bem, pelo menos já sei que não estou sonhando.
- É na rua, algum baderneiro, respondo a ela, ao mesmo tempo em que tento acalmar meus batimentos cardíacos, consolando a mim mesmo: "Caramba, essa quadra já foi mais tranquila".
Será que pode existir alguém tão diabólico a ponto de ficar dando tiros na rua durante a madrugada, só para assustar a pacata vizinhança? E a polícia? Bem, se depender da eficiência dela, melhor eu botar algodão nos ouvidos e tentar dormir...
Mal amanhece e, novamente, o tiro maldito! Que desgraça! Percorro mentalmente a região do cérebro que processa a audição (qual é, mesmo?). Sou levado a concluir que a fonte do barulho parece não mudar de lugar. Sempre no mesmo ponto da rua. Mas onde?
Vem a tarde, vem a noite, madrugada, amanhece novamente, mais um dia, e os estouros infernais continuam, a intervalos quase regulares, pelo menos um a cada hora, Ã s vezes dois... Ora mais fortes, ora mais abafados. Tiro ao alvo? Espingarda de pressão? Bombas debaixo da lata? Impossível que alguém se mantenha fazendo isso dia e noite, madrugada adentro...
Procuro esquecer aquela desgraça, mas lá pelo terceiro dia não aguento. Saio à rua e vou investigar. Fico por ali observando. Pumba! Olha aí! Outra vez! Onde? Nenhuma agitação, nenhuma fumaça, tudo quieto. Olho para todos os lados e não vejo nada que me dê uma pista.
Atravesso a rua e assobio para o zelador do prédio vizinho.
- Você ouviu esses estouros aqui por perto?
- Não, não ouvi nada. Deve ser a porta batendo, responde o distraído zelador, que de repente me parece um idiota inútil.
- Pumba!!
- Isso aí, ouviu agora? Pergunto, aproveitando que o estouro interrompeu nossa conversa.
- Ahhh, isso não é nada, não. Pensei que o senhor tava falando de tiro mesmo. Que nada, isso é ali, ó. Aponta para um quintal no outro lado da rua e explica:
- Tá caindo manga do pé. Elas caem em cima do zinco da garagem ali, ó...
Incrédulo, aproximei-me do tal quintal. O zelador me acompanha e faz questão de enfiar o braço pela cerca para recolher uma manga do chão.
Verdade! Mês de dezembro, mangas maduras. Aqui está ela. Grande, pesada. Se fosse bala, seria de canhão, ainda mais com essa casca vermelho-fogo.
Pudera, uma manga desse tamanho caindo lá da copa da mangueira, sobre uma cobertura de zinco, dá pra assustar a quadra toda!
O morador dessa casa... Humm, conheço esse vizinho. Parece boa gente, mas... tenha dó. Abrigo com cobertura de zinco em baixo dessa mangueira gigantesca?...
As mangas continuam caindo. Intervalos curtos quando está ventando, intervalos maiores quando venta pouco. Mas com uma diferença: não me abalo mais, parei de me preocupar. A cada novo estouro, em lugar de imaginar um demónio perturbando a rua, vejo uma doce oferta da natureza. Uma fruta madura e saborosa. Que maravilha, ter uma árvore tão produtiva aqui ao lado... Já nem percebo mais o tal barulho.
De repente:
- Puta que pariu!! grita uma nervosa voz feminina, em alguma casa por perto.
Foi mais um tiro. Mas essa vizinha, coitada, ainda não sabe que são apenas algumas doces ofertas da natureza. O problema é a porra do zinco ali embaixo da mangueira.
Muito engraçado observar como faz diferença o fato de entender o que se passa! Como é importante saber a origem das coisas! Já pensou como a gente reagiria ao apocalíptico ruído do avião a jato num vóo rasante de madrugada, se não soubéssemos de que se trata? Já pensou no desespero da menina que não sabe o que está acontecendo quando, inesperadamente, surge a primeira menstruação?
Somos assim. O homo sapiens tem de saber as coisas. Seu cérebro está programado para encontrar relações de causa e efeito, para achar soluções. Quando não as encontra, põe-se a imaginar problemas. E como é eficiente nessa tarefa!
O grande Platão deve ter pensado nisso ou em algo parecido, quando explicou a essência do mito da caverna. Ou entendemos a lógica dos acontecimentos, ou a inventamos seguindo a natureza dos nossos pesadelos...