Então, porque era quase Ano Novo, resolveu dar-se um presente.
O que seria se de tudo tinha um pouco, se de nada precisava?
Caixinha de prata, tinha.
Pulseira e anel, comprara.
Batom, perfume, mãos de unhas feitas.
Sandálias, tinha. Sapatos, idem.
Vestidos e saias e meias e rendas e calcinhas de seda.
O que dar-se ela própria a ela mesma?
Tinha a mesa e o escritório atolados em livros.
Tinha colares esquisitos que ninguém entendia.
Por isso mesmo todos ficaram surpresos, os sonsos, quando ela deu-se, rindo feito louca, guardadora de seus mistérios, um pentagrama esquisito, comprado num cameló.
Desde então, segura a mão dos outros e lê sortilégios e inquietações.
2.
Pra o Ano Novo, apenas um desejo: amor.
Passeia os olhos compridos neste mundo de mais ninguém.
A casa vazia, o sofá da sala é impecável, a vida é uma bobagem.
Mas fica feliz que só quando vai à feira e o florista sorri pra ela:
- Dona Zizinha, a senhora não muda nunca,hein? Sempre tão jovem e bem cuidada!
Sem compreender que é somente um elogio de quem quer vender uns crisantemos a mais, responde rindo, vesga e velhinha:
- É que eu bebo formol todos os dias, esperando pelo senhor!
Paga as flores, ri dentaduras duplas, e arruma o cabelo pintadinho de quase-azul.
Depois, empunhando crisantemos em meia-dúzia, caminha menina de quinze anos, rebolando as ancas...abanando-se com a pseudo ventarola japonesa que acabou de ganhar na banca das bananas.
3.
Ninguém sabe que o nome dela é Creusa: ela o esconde como quem esconde o bico do peito no velório.
Cantava no coro da igreja católica, mas debandou para uma outra, evangélica, onde tudo "é mais alegre e ninguém tem vergonha de ganhar muito dinheiro".
Faz vigílias, dá o dízimo tirado do salário magro de aposentada, e briga a quase tapas com as amigas que zombam dela , dizendo que o dinheiro é pra o pastor.
Senta-se na primeira fila dos cultos.
E o homenzinho, que recolhe as doações numa bandeja, estica o olho pra ela. Já pediu pra acompanhá-la à casa, mas ela jamais permitiu que ele subisse as escadas. Lá não, diz sibilando, lá fui feliz com meu marido que acabou de morrer.
Perguntada há quanto tempo é viúva, diz que há uns 4 anos.
Mentira. Nunca foi casada, aos 63 anos é ainda virgem. Mas esconde isso como quem esconde um esqueleto no armário. O homenzinho gosta dela, e Nosso Senhor sabe o que faz.
Esther PS Rosado
estherr@iconet.com.br
Esther PS Rosado é professora de Literatura e Redação em curso pré-vestibular.