Foi num dia de semana... Em uma parte qualquer da capital. Em um momento qualquer da tarde. Distraída, esqueci-me dos avisos do policial na t.v.. O vidro do carro aberto pra espantar o calor infernal. Estava sozinha, aventurando-me como motorista na cidade grande. O sinal vermelho mandou que eu parasse...Parei.
Tirando-me dos meus pensamentos, uma voz de criança trouxe-me à realidade. Assustada, olhei para um rostinho que estava do lado de fora do carro. Como fechar um vidro que não era elétrico, sem demonstrar minha insegurança? Resolvi analisar o meu possível risco urbano. E, por dentro, rezava para que fosse um sonho.
Meu perigo iminente era franzino. A pele clara, encardida. Os cabelos claros, curtos e mal cuidados... Os lábios apresentavam um estranho aspecto esbranquiçado... Certamente efeito do cheiro constante da tal cola de sapateiro. Estava sem camisa. Nas mãos, uma caixa pequena, dessas de vender doces e balas. Tinha uns doze anos...No máximo treze. E os olhos...Os olhos estavam fixos em mim... Gelei!
A pergunta veio... O que ele queria saber? Não pedia um trocado...Não ofereceu doces, balas ou chicletes pra ajudar a comprar comida... Não anunciou um assalto. Não disse coisas obscenas... Não mostrou sua revolta contra uma situação que nem sabia existir... Queria apenas saber uma coisa... Se era verdade que não podia falar palavrão na quaresma. Por que não perguntou quais eram seus direitos de adolescente e cidadão? Seria mais fácil, pra mim, responder.
Diante da pergunta inesperada do menino que não tirava os olhos de mim, tomei a atitude dos que não sabem o que dizer. Apenas respondi que sim. Mas, mãe que sou, esqueci-me de que os pequenos não aceitam monossílabas. Ele perguntou o porquê. E, como o maldito sinal não mandava que eu prosseguisse, respondi o que ouvi desde pequena... Sem acreditar na versão, disse que era pecado. Que pecado enganar uma pobre criança! Eu não sabia nem qual era o palavrão que ele conhecia.
O olhar ainda fixo, sorria, aliviado. Disse, então, que um colega seu, o qual apontava metros atrás, tinha contado que falar palavrão na quaresma transformava as pessoas em "lobisomem". Meu Deus! Em plena capital, uma criança com medo de uma lenda do interior. Vi que o mundo ainda tem salvação. Dei a ele o meu sorriso. Fixei o meu olhar no dele. E disse que não era verdade. Pobre menino! Tantos medos reais... Meu amor de mãe não podia permitir que uma noite de sono, mesmo que sob os jornais, se desfizessem por algo em que não acredito.
Pergunta respondida, o menino podia ir embora... mas não foi. Eu tinha lhe dado um sorriso... Ele queria outro... Senti isso. Os olhos dele pediam. A alma dele precisava, para que o lobisomem não o viesse assustar. Sem demonstrar medo, dei a ele o meu mais calmo e sincero sorriso... Naquele momento, fomos mãe e filho...Fomos cúmplices contra os mitos da vida...Fomos amigos... Naquele instante, o sorriso de volta do menino fez com que eu acreditasse nos anjos. Eles existem, e protegem os meninos nos sinais.
O sinal se abriu... Agora, eu queria mais um tempo pra dar mais um sorriso pro menino. Mas dei um tchau e ouvi um obrigado. Ganhei um aceno da mãozinha pequena. Vi, pelo retrovisor do carro já em movimento, o aceno do colega do menino. Sigo meu caminho... Eu não sabia que um sorriso era tão importante... Sigo...Sorrindo.