Você já conheceu de perto um marechal? Pois eu já. Era o marechal mais Marechal que você possa imaginar.
Alto, espadaúdo, vivia cofiando o seu recurvo bigode grisalho, de pontas afiladas. Os cabelos ondulados, de tão brancos, chegavam a azular. Tudo isto enfeitando e emoldurando uma face glabra (não pega bem o termo para um escanhoado marechal? Adorei!) De tez queimada pelo sol - que o marechal era dado a banhos de mar, longas e marchantes caminhadas pela praia.
Mesmo se você não o conhecesse, ao vê-lo de peito estufado, barriga plana, encolhida, cabeça erguida, olhar fixo no horizonte, respiração profunda em inspirações e expirações, como manda o figurino, tenho a certeza de que diria: ali vai um autentico marechal!
Absolutamente pontual. Eu tinha a impressão de que o seu relógio possuía mais segundos e minutos do que o meu. Com suas pupilas incisivas, ele os contava meticulosamente e os dividia entre os seus compromissos de maneira inusitada:
- Às seis e três minutos estarei fazendo tal coisa; Ã s sete e quarenta e dois minutos seguiremos viagem; Ã s dez e cinquenta e três,faremos um lanche.
Eu ficava de olho no relógio e no marechal. Tiro e queda, não falhava um segundo.
Todas as noites à s dezenove e trinta e sete minutos, ele tocava a campainha do meu apartamento; morava no andar de cima e vinha saborear a sobremesa e o cafezinho. Sua mulher era diabética e os filhos tendiam à obesidade. Ficava conversando ou jogando baralho com meu sogro, até as vinte e uma e cinquenta e quatro minutos quando, impelido por mola, partia.
O marechal era uma ilha isolada, distante, no seio da sua família. Bastava que entrasse no ambiente para que todos se esgueirassem, deixando-o só, com o tique-taque do seu relógio. Já o apelidavam de Marechal Big-Ben.
Como se pode imaginar, o velho marechal adoeceu; o que não se pode imaginar foi a trabalheira que deu. Os médicos, as enfermeiras e os familiares faziam fila à sua porta. Lá da cama ele comandava quem deveria entrar, para fazer o quê, nos minutos aprazados.
Às dezenove e trinta e sete minutos eu deveria estar ao seu lado, dando-lhe, Ã s colheradas, a sua apropriada sobremesa. Com tristeza eu o via abater-se, sua voz perder a energia, mas o seu olhar, mesmo esmaecido, procurava ainda o relógio.
- Christina, ele me disse, amanhã, Ã s dez e trinta e seis minutos, você venha buscar o meu relógio. Ele é seu, porque eu lhe quero muito bem!
No dia seguinte corria a notícia da morte do marechal. Com a afobação do momento eu não me lembrei do relógio. No fim da tarde sua mulher trouxe-me a sua lembrança que, parado, marcava exatamente dez horas e trinta e seis minutos...