Cerca das três horas da manhã de 13 de Junho de 2005, enquanto Lisboa dealbava para o dia do seu incontestado santinho eleito, no Porto, finava-se na sua residência, ao Passeio Alegre, o cidadão José Fontinhas. A notícia acumulava, com poucas horas entre si, três sucessivos passamentos de personalidades cimeiras da vida portuguesa: o general Vasco Gonçalves e o doutor Álvaro Cunhal. Os três tinham já ultrapassado a meta óptima de chegada ao cume crucial da vida: os 80 anos. Daí para a frente, se não se vai bem, lucidamente, o melhor é não ir a preço algum para muito pior.
José Fontinhas, filho de camponeses da Póvoa de Atalaia, no Fundão, nasceu em 19 de Janeiro de 1923. Estudou em Lisboa, em princípio no Liceu Passos Manuel e depois na Escola Técnica Machado de Castro, tendo-se profissionalizado como funcionário público. Desde sempre se mostrou avesso aos grandes convívios da vida pública.
A mãe, motivo de tantos dos seus poemas, chamava-se Maria dos Anjos. O pai Alexandre, descendente de uma família rural abastada, só muito depois do nascimento do filho é que casou, mas o casamento foi de muito curta duração. Durante décadas o poeta rasurou a figura do pai. Segundo uma entrevista que deu ao jornal "Público", ao entrar dos anos 90, designou-o ironicamente "por senhorito do Monte da Ribeira de Orca". Quando este se ofereceu para perfilhá-lo, José Fontinhas, então Eugénio de Andrade, recusou e ignorou-o completamernte.
Os seus livros "As mãos e os frutos", em 1948, e "Os amantes sem dinheiro", em 1950, foram as suas primeiras publicações e as que desde logo revelaram Eugénio de Andrade, pseudónimo que adoptou e firmou no panorama poético português.
Inicialmente o seu pendor literário passou pela tradução de poetas como Lorca, Safo e Yannis Ritsos, organizando diversas antologias, uma das quais dedicou ao Porto sob o título "Daqui houve nome de Portugal", editada em 1968.
Muitíssimo galadoardo e considerado, em 2001 foi-lhe atribuído o Prémio Camões, actualmente a mais importante distinção das letras portuguesas. As suas obras estão traduzidas e editadas, na Alemanha, China, Estados Unidos da América, Espanha, Rússia, Venezuela, México, Jugoslávia, Itália, França e no Reino Unido.
Os navios existem, e existe o teu rosto
encostado ao rosto dos navios.
Sem nenhum destino flutuam nas cidades,
partem no vento, regressam nos rios.
As palavras que te envio são interditas
até, meu amor, pelo halo das searas;
se alguma regressasse, nem já reconhecia
o teu nome nas suas curvas claras.
Eugénio de Andrade
in "Palavras Interditas" - 1951
Emissor de uma poesia dedicada em grande parte ao amor da natureza, dos seres e do corpo, Eugénio de Andrade soube dotar-se de uma plástica literária assaz admirável, sensual e musicalíssima, reelaborando a palavra até ao despojamento para se reeencontrar como o ser eleito, tomando a solidão por reduto essencial, espécie de "só-ele-e-as-aves-que-planam-sobre-o-mundo". Morreu um poeta que metia as palavras nas veias e só as tirava após profunda meditação.
António Torre da Guia
O Lusineiro |