"Vota em mim",
Dizem-me tantos
Com olhos doces
Estendendo-me os braços,
Seguros de que seria bom
Que eu os ouvisse
Quando me dizem:
"Vota em mim"...
Eu olhos-os
Com olhos lassos...
Há nos meus olhos
Ironias e cansaços...
Cruzo os braços
E não voto em ninguém...
A minha glória é esta:
Criar contrariedade,
Não votar em ninguém,
Pois eu vivo
Sob a mesma realidade
Com que rasguei
O ventre a minha mãe...
Não...
Não voto em ninguém,
Tenho as minhas convicções
Entre o destino
Dos meus passos...
Se ao que busco saber
Nenhum de vocês me responde
Porque me repetis:
"Vota em mim" ?...
Preferiria escorregar
Nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos
E como farrapos
Arrastar meus pés sangrentos
A ter de votar em vocês...
Se vim ao mundo
Foi para desflorar
Florestas virgens
E desenhar
Meus próprios pés
Na areia inexplorada...
De resto
O mais que faça
Não vale nada !...
Como, pois, sereis vocês
A dar-me impulsos,
Ferramentas e coragem
Para eu derrubar
Os meus obstáculos ?...
Corre-vos nas veias
O sangue velho dos avós
E vocês amais o que é fácil...
Eu amo o longe e a miragem,
Amo os abismos,
As torrentes e os desertos...
Ide... Ide !...
Tendes estradas,
Tendes jardins,
Tendes canteiros,
Tendes pátrias,
Tendes tectos,
Tendes regras e tratados,
E filósofos,
E sábios...
Eu tenho a minha loucura,
Levanto-a como um facho
A arder na noite escura...
E sinto espuma,
E sangue,
E cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo
É que me guiam,
Mais ninguém...
Todos tiveram pai,
Todos tiveram mãe...
Mas eu
Que nunca príncipio
Nem acabo,
Nasci do amor
Que há
Entre Deus e o Diabo...
Ah...Por favor,
Que ninguém me dê
Piedosas intenções,
Ninguém me peça definições,
Ninguém me diga:
"Vota em mim"...
A minha vida
É um vendaval
Que se soltou,
É uma onda
Que se alevantou,
É um átomo a mais
Que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou...
Só sei
Que não voto em ninguém !...
Adaptação hodierna
Do "Cântico Negro"
De José Régio