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Discursos-->Discurso de Paraninfa - Medicina 1998 -- 31/08/2006 - 20:08 (Ana Maria de Oliveira Ramos) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Meus queridos formandos de medicina

Qual seria o momento ideal de criar palavras dirigidas a quem amamos?
Se pensássemos de modo temporal, escolheríamos as primeiras horas do dia, quando o cansaço físico e mental não existissem, ou um final de semana, longe das batalhas diárias, quando nosso espírito pudesse contar com uma inspiração serena... Como professores poderíamos nos recolher ao silêncio de uma sala de aula vazia...
Mas porque seria imperiosa essa concentração e essa necessidade de um ambiente de calma? Na verdade, falar a pessoas queridas não deve ser difícil, ao ponto de termos que escolher o momento ideal ou o local de fazê-lo. Falar com quem se ama é tão espontâneo, que as palavras brotam como pequenas plantas vindas de sementes jogadas em terreno fértil...
Com entes queridos, falamos no dia-a-dia através de um gesto, mesmo sem palavras, de um olhar que transmita confiança em suas atitudes, com uma conduta que lhes inspire exemplos, com um abraço, com um aperto de mão...
Mas chega um momento em que somos realmente solicitados a dirigir palavras formais a pessoas amadas. Nesta hora, então, tudo se torna mais difícil. As palavras nos fogem da mente, embotada pela emoção, procuramos frases feitas que sofisticadamente tentem transmitir um sentimento íntimo tão fácil de ser emitido sem palavras.
É mais séria a responsabilidade, quando temos que lidar com frases que tenham um sentido real de carinho, mas antes de tudo, de orientação, de respeito e de satisfação pela vitória alcançada por alguém amado.
Minhas palavras a vocês serão simples, destituídas de rebuscamentos literários, sem aquele dom de oratória tão necessário em momentos tão solenes como este, mas que infelizmente não o possuo... São, antes de tudo, palavras criadas com emoção, com orgulho de um dever cumprido, traduzindo sentimentos muito pessoais e carregadas de um imensurável amor... Simplesmente, seguindo o pensamento de Virginia Woolf, “devemos modelar nossas palavras, até se tornarem o mais fino invólucro dos nossos pensamentos”...
Se eu já me sentia profundamente orgulhosa de ver o brilhante caminho traçado por seres a mim muito caros e que foram por mim gerados, sou agora tocada por uma emoção maior, pois o gesto de confiança a mim dirigido foi feito por uma turma de jovens brilhantes, determinados, puros de espírito e que iniciam agora a colher os frutos plantados nestes longos e árduos 6 anos do curso médico.
A juventude é desprendida, generosa, entusiasta, confiante... Dentro deste contexto, consigo então compreender o gesto altruístico e espontâneo da escolha do meu nome para ser paraninfa desta turma de jovens médicos, concedendo-me assim, o mágico e maravilhoso momento de compartilhar, de modo mais íntimo, de suas comemorações da colação de grau.
Victor Hugo traduziu muito bem meus sentimentos, quando disse: “Se não há nada que brilhe debaixo da pálpebra, é que nada há que pense no cérebro e nada há que ame no coração”. Sinto meu coração comandar meu cérebro e meus pensamentos neste momento e uma lágrima de emoção é incontrolável... Gratidão pelo carinho e pela confiança em mim depositada ficarão para sempre gravados em minha memória...
Minha responsabilidade, neste momento, torna-se imensa, pois tenho que representar hoje um duplo papel: o de mãe e o de professora.
Na verdade, foi muito fácil fazer eclodir personalidades íntegras nesses jovens, conduzidos desde o nascimento para este fim... Partilhando comigo desta vitória, aqui estão os grandes responsáveis por este sucesso. As peças mais importantes nesse jogo da vida são, na verdade, os pais aqui presentes e aqueles que aqui não se encontram por impossibilidade física ou que já nos deixaram em matéria mas que, com certeza, agora participam em espírito conosco, neste momento.
Como mãe, divido com os demais pais e mães aqui presentes, as lembranças de pequeninos entes frágeis que aprenderam conosco a falar, a caminhar, a ler, a escrever e a seguir passos iguais aos trilhados por qualquer ser humano nessa fase da vida... Nessa etapa, a figura marcante dos pais foi, sem dúvida, a mão que os moldou e os fez chegar aonde estão. Tivemos sorte pois, daí por diante, estes jovens se salientaram e se distinguiram dos demais. Cresceram íntegros e se transformaram em gigantes. Partilhar deste momento com vocês pais é um sentimento que explode do íntimo do meu coração e é com um imenso orgulho que nós podemos dizer que eles são vitoriosos e que são nossos filhos...
Como mãe, ainda, dirijo-me a vocês pais, agradecendo a oportunidade que me foi dada de conviver de perto com seus filhos. Eles exerceram importante papel na vida de Ana Carla e Carlos Cesar. Em sua memória, tenho certeza que ficará gravada a figura de cada um deles, com seus defeitos, mas antes de tudo com suas qualidades e com o modo individual de cada personalidade. Sou-lhes grata por eles serem tão verdadeiros, tão íntegros, tão sinceros e, por vezes, ainda tão infantís... Na verdade, acho que, durante estes 6 anos, os roubei um pouquinho de vocês, pois tive a sorte de ser mãe, amiga e professora de todos eles.
Como mestra, divido a participação nesta vitória com os colegas aqui presentes e com todos os demais professores do curso de medicina, que jogaram, incessantemente, conhecimentos e experiências profissionais a serem seguidos por tão brilhantes futuros médicos.
Ser professor é uma missão divina... É, desprendidamente, querer deixar em alguém a continuidade de tudo que lhe foi passado por outros que lhe antecederam... É não querer deixar morrer com a matéria todo um conteúdo arquivado nos circuitos neuronais. É desejar que os mais jovens adquiram conhecimentos tais que cheguem até a ultrapassá-lo em sabedoria e em experiência. Ver um ex-aluno brilhar é uma imensa satisfação para seu antigo mestre. É uma sensação prazerosa ver alguém galgando os patamares da glória profissional e saber que dela você participou, nem que seja com uma ínfima parcela.
E hoje, posso dizer que me sinto imensamente recompensada. Vejo ao meu lado, como homenageados que foram por vocês, brilhantes profissionais médicos e professores, alguns deles ex-alunos meus... Vejo, principalmente, futuros profissionais médicos que ainda terão muitos caminhos a percorrer, mas que, sendo fruto de tão grandes mestres, só virão a ser motivo de orgulho para o nosso Estado e para a nossa Universidade.
Mas há uma terceira missão a mim imposta nesta hora. É a de me dirigir a vocês como médica.
Abraçar esta profissão tem muito de divino. Nesta escolha, o saber e o bem-estar da humanidade devem vir em primeiro lugar. A trilha agora iniciada será brilhante, espero, mas lembrem-se que nesta estrada devem estar preparados para enfrentar as angústias, a dúvida, o cinismo, a desesperança, até que seja alcançada a plenitude. Sem esses confrontos, o homem vive apenas como um animal, sem opções de caminhos e sem sabedoria, e sua vida é inútil, seja qual for seu grau de poder e o nascimento que tenha tido.
Ser médico, estar médico, pensar médico, respirar médico...
Uma responsabilidade ímpar na escolha profissional.
A vida, em primeiro lugar. A arte de saber mantê-la.
Não existem receitas programadas para o exercício da medicina.
Lidar com a vida e a morte, tendo que usar da profissão para a sobrevivência, tendo que enfrentar competições às vezes até desleais, tendo que encarar dificuldades de ordem técnica, tendo que estar em constante reciclagem de conhecimentos científicos, são algumas dentre as muitas arestas a serem lapidadas...
O catecismo maior do exercício desta profissão acha-se contido em diminuto impresso de algumas páginas, contendo quatorze capítulos e 145 artigos, o Código de Ética Médica, a ser seguido literalmente por vocês no caminho que ora se inicia. E na I Conferência Nacional de Ética Médica, realizada em 1987 no Rio de Janeiro, fica claro o papel do médico e da medicina, sob forma de um compromisso com a sociedade, onde o conceito de saúde deve ser um direito da cidadania e um dever do estado.
Na íntegra, transmito agora o que foi manifestado nessa Conferência.
“Todo ser humano, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, religião, ideologia, idade, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou condição sócio-econômica, nascimento ou qualquer condição, tem direito a um padrão de vida que lhe assegure saúde e cuidados médicos. Entende-se por saúde, não a ausência de doença, mas a resultante das adequadas condições de alimentação, habitação, saneamento, educação, renda, meio ambiente, trabalho, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso a serviços de saúde. E deste conceito amplo implica a garantia pelo Estado dos direitos sociais fundamentais de cidadania. Assim entendida, a saúde de uma comunidade não pode ser o resultado da atuação isolada de uma única profissão, mas deve resultar de atividades multiprofissionais. A Medicina, enquanto profissão tem, por fim, a promoção, preservação e recuperação da saúde, e seu exercício é uma atividade eminentemente humanitária e social. É missão do médico zelar pela saúde das pessoas e da coletividade, aliviar e atenuar o sofrimento de seus pacientes, mantendo o máximo de respeito pela vida humana, não usando os seus conhecimentos contrariamente aos princípios humanitários.”
Lindas e profundas palavras, não?
Se fossem textualmente seguidas, não teríamos a fome assolando populações carentes e a grande responsável pelas altas taxas de mortalidade infantil. Não teríamos o desemprego que avilta o ser humano e que o torna incapaz de erguer a cabeça e enfrentar o olhar dos seus semelhantes. Doenças? Só existiriam aquelas decorrentes do próprio desgaste natural do ser humano pelo envelhecimento, as decorrentes da incapacidade científica da descoberta de sua etiologia e as decorrentes da baixa de defesa contra os agentes agressores naturais. E estas bem que também poderiam ser evitadas.
Mas, dentro do quadro real existente, onde todo o dito parece uma utopia e onde os destinos são sombrios, surge uma luz no final do túnel. E vocês são parte desta chama que clareia os horizontes dos desiludidos, dos famintos, dos carentes, dos enfermos.
Sinto que nosso povo humilde acaba de ser presenteado com 46 novos médicos que tentarão o possível e, quem sabe, até o impossível, para reverter a situação caótica em que se encontra a assistência médica à nossa população.
Exercer a profissão agora escolhida por vocês é um ato de coragem, de fé na humanidade, de crença nos líderes que supostamente comandam o futuro de nossa nação. É também um ato de perseverança, de doação, de apostolado. Mas, acima de tudo, é um imenso ato de amor! Agora não há mais retorno. A fé foi creditada a vocês. Façam por onde ela não se desgastar.
Vejo minha querida e saudosa Universidade sofrendo com a fase crítica do êxodo de professores competentes, por falta de estímulo à tão digna e desprendida profissão de professores universitários... Estamos vivendo momentos de grande perplexidade e desencanto no cenário nacional e, assistindo atônitos e sem poderes para coibí-la, a queda de um dos maiores monumentos reverenciados em todos os países do primeiro mundo: a Universidade...
Não desejo, neste momento festivo, manifestar desencantos, mágoas e inseguranças com relação aos destinos da nossa instituição maior... Só espero que as gerações futuras possam impedir a decaida eminente do nível e da seriedade de nossa casa de ensinamentos e que a sensatez e prudência de nossos governantes seja inspirada pelo divino Pai, não permitindo que o proselitismo seja instalado, com prejuizos às classes menos favorecidas.
O vazio obscuro deflagrado na nossa Universidade também poderá ser revertido com o seu retorno... Quem sabe, teremos entre vocês, futuros mestres brilhantes, numa instituição que favoreça a todos, indistintamente, e que continue a instruir tão bem àqueles que têm sede de saber, independentemente do berço de origem...
Como mãe, professora e médica, acredito plenamente em vocês. Não me inquieto sobre sua integridade de conduta, pois sempre ví uma sinceridade de propósitos a brilhar nos seus olhares. Tenho certeza que vocês conseguiram armazenar conhecimentos científicos o bastante, pois presenciei, de muito perto, suas horas de vigília, de doação, de cansaço, de renúncias.
Tenho, em minha mente, as deliciosas imagens da descontração pura e quase infantil que repetidamente dividimos juntos durantes estes anos. Platão, um dos maiores pensadores gregos, nos legou palavras muito sábias a este respeito: “Você pode descobrir mais sobre uma pessoa em uma hora de brincadeira do que em um ano de conversa”.
Vou sentir um vazio muito grande dentro de mim, pois sei que vocês irão partir. Vou ser envolvida por uma enorme saudade da presença estimulante de cada um de vocês, que sempre estiveram comigo em momentos felizes mas também nas horas de angústia. Vou sentir falta de um olhar amigo, de um aperto de mão solidário, de um gesto de carinho, de um abraço sincero, de sorrisos de alegria...
Sei que um futuro promissor os espera. A minha saudade não é egoista ao ponto de desejar que vocês não partam. Vão com Deus, com vontade de crescer ainda mais, com esperanças de uma constante evolução profissional. Se for melhor para vocês, voltem com garra e com vontade de abrandar a qualidade de vida de nossos enfermos e de tentar evitar que o cáos aconteça nas salas de aulas do curso de medicina.
Sei, antes de tudo, que a vitória hoje alcançada está apenas começando e que vocês deverão se sentir imensamente responsáveis, pois a vocês foi hoje conferido um grande poder: a arte de curar. É a maior arte já desenvolvida pela humanidade pois é, talvez, a única que só pode ser exercida com desprendimento e com amor!
Que este domínio jamais seja empregado de modo indevido, com omissão, com imprudência, com negligência, com autoritarismo, com desrespeito a colegas e, em momento algum, usado para corromper os costumes ou para corroborar com algum ato indígno. Sejam honestos, simples, modestos, solidários, lembrando sempre que erros podem ser cometidos, dada à nossa condição humana. Peçam sempre a inspiração divina durante cada conduta profissional exercida. Nunca se deixem achar totalmente competentes ao ponto de não sentir necessidade de pesquisar, de procurar respostas às dúvidas... São de M. Scott Peck as sábias palavras: “Muitas vezes, a dúvida é o início da sabedoria”.
Nunca permitam que a presunção, a arrogância, o preconceito, a ganância e os pecados da ostentação e do exibicionismo abriguem seus corações... Tolstoi define muito bem estas minhas recomendações: “Não existe grandeza quando a simplicidade, a bondade e a verdade estão ausentes”.
Que a palavra adeus não seja dita nesta hora de emoção e de alegria... Que um até breve, com votos de sucesso e com certeza de vitórias, os acompanhe...
Peço aos pais, aqui presentes em espírito ou em matéria e principais forjadores da personalidade e do caráter destes jovens, aos mestres que serviram de exemplo e que ajudaram a moldar tão promissores profissionais, aos familiares e amigos que também estão exultantes com a vitória hoje alcançada, que, juntos, os reverenciemos e a eles desejemos boa sorte.

Muito grata,
Ana Maria de Oliveira Ramos
Natal, 28 de dezembro de 1998
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