Primeira Parte - Fantine - Um justo - 1. Myriel = Em 1815 era bispo de Digne Charles-François- Bienvenue Myriel. Era um ancião de cerca de setenta e cinco anos; dirigia a diocese de Digne desde 1806. Embora este pormenor nada tenha de intrínseco com o que temos para contar, talvez não seja inútil - quanto mais não seja senão por escrúpulos de exactidão - referir os boatos e comentários postos a correr acerca dele quando da sua entrada na diocese. Verdadeiro ou falso, o que se diz dos homens...
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Os miseráveis, miséria, miserabilismo, quase 200 anos depois, 200 anos que decorreram em permanente conflito ali e acolá, enquanto a ciência e a técnica, persistentes no progresso, colocaram ao dispor da humanidade desideratos que fariam Vitor Hugo, se apanhado de relance, desistir de escrever o que escreveu. Em 2007 as agruras do trabalho suavizaram-se, come-se, bebe-se, sexualiza-se e dorme-se muito além do impensável dois séculos atrás. Entretanto, permanecendo estupidamente entre as asas do supérfluo, como na diocese de Digne, pela diocese do Porto os miseráveis, a miséria e o miserabilismo escorrem às catadupas numa das mais lídimas ruas da cidade, rua que até tem nome de santa.
Vê-se gente a pernoitar nos recantos dos passeios, a escabulhar os contentores de lixo procurando avidamente restos de comida. Vê-se e o que não se vê ainda mais alto haveria de bradar às consciências que têm a certeza absoluta da desgraça que grassa, clamidade a passar-se com milhares de pessoas que não fazem mal a uma mosca, tão-só vítimas da condição e do galope da vida. Vê-se também a rodos, face à inoperância policial na prevenção, energúmenos de armas em punho a assaltar e a violentar cidadãs e cidadães. Quando são presos, não lhes falta que comer, cama e roupa lavada, princípes de um sistema implantado pela famigerada hipocrisia que não cessa de exibir-se a fazer caridade e justiça.
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Livro Décimo-Quinto - A rua do homme-armé - Os excessos de zelo de Gavroche = (...) Do tiroteio resultou alguma coisa. O carro foi conquistado, o bêbado foi preso. Um foi metido na loja; o outro teve de responder em conselho de guerra como cúmplice. O ministério público de então deu, nesta circunstância, clara prova do seu incansável zelo na defesa da sociedade.
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Os portugueses escusam bem de ler "Os Miseráveis" para aprender o curso da miséria. Os portugueses sabem sem equívoco que constituem o paradigma-anão dos países-gigantes onde o miserabilismo é ainda mais refinado. É espectacular como se queixam e reinvindicam sobre tudo, organizam procissões de fé, empreendem marchas de protesto, levantam punhos e cartazes por melhores condições disto e daquilo, recusando-se a levantar uma palha em favor dos que minguam por baixo de si. Aliás, exploram-nos até ao último cêntimo pedinchado. " - Ena, pá, onde foste arranjar os 20 euros?!... Têm o Padre-Nosso inculcado na pele toda: "Venha a nós o Vosso reino" e aceitam placidamente a miséria que os circunda.
Miseráveis, miséria, miserabilismo, a passear de automóvel, a dizer em absoluto nada ao telemóvel, não sabendo como fazer para alcançar o super-canal que não existe. Já não deitam exuberantes o braço de fora nas voltinhas de popó porque deveras têm medo da ladroagem impante que pode esperá-los em qualquer sítio, a tal priveligiada classe que tem hotel garantido quando o "trabalho" lhe corre mal. Apre, arre, chiça, basta de sofismania miserabilista. Não se ignorem e não se iludam as prioridades que nos gritam à alma. Senão limparmos a entrada da consciência as prioridades que nos gritam à alma, teremos de incontornavelmente confrontar-nos à saída com os dejectos humanos que produzimos..