Seria irrealista esperar que o presidente Lula dissesse o contrário, mas nem por isso pode passar sem reparo a sua avaliação, manifestada em entrevista ao programa Hard Talk, da BBC de Londres, de que o presidente - ou melhor, o protoditador - da Venezuela, Hugo Chávez, “não representa um perigo” para a América Latina. Naturalmente, o que levou o entrevistador Stephen Sackur a trazer para a sabatina a posição de Lula diante da figura do coronel de Caracas foi a sua mais recente agressão às já combalidas liberdades democráticas no seu país, o cancelamento da concessão da emissora oposicionista RCTV, a mais popular da Venezuela. Lula fez o que sabia para sair pela tangente do embaraçoso questionamento, a ponto de ser admoestado pelo jornalista: “Para mim, o senhor está tentando evitar fazer críticas a Chávez.” Pura verdade.
O Brasil é o segundo maior parceiro comercial da Venezuela, depois dos Estados Unidos - e Lula leva em conta os interesses de empresas brasileiras no vizinho país para reagir com menos ênfase do que seria apropriado às sortidas chavistas, mesmo quando afetam diretamente o País, a exemplo do rombudo ataque do caudilho ao Congresso Nacional por sua moção de censura à extinção da RCTV. Se quisesse traçar a proverbial linha vermelha entre o tolerável e o inaceitável, o governo, em vez de convocar o embaixador venezuelano a dar explicações ao Itamaraty, poderia chamar a Brasília, “para consultas”, o embaixador brasileiro em Caracas - uma inequívoca mensagem nas relações bilaterais de quaisquer países. De todo modo, vai uma distância entre ficar aquém do necessário e ir além do conveniente.
Nesse intervalo é que se situa a questão substantiva do perigo representado pelo chavismo - ou pela tentação autoritária em geral, onde quer que se manifeste na região - para a consolidação democrática no hemisfério. Se o regime das liberdades de há muito estivesse firmemente enraizado na América Latina, a Carta da Organização dos Estados Americanos (OEA), da qual a Venezuela é signatária, não conteria uma Cláusula Democrática e tampouco o Tratado do Mercosul, ao qual a Venezuela quer associar-se. Ambos os textos deixam explícito que afrontas à democracia não são assuntos de alçada exclusivamente interna dos países onde tenham ocorrido, mas de toda a comunidade regional. É um equívoco, nesse contexto, falar em “aprender a respeitar”, como recomendou Lula na mencionada entrevista à BBC, “a lógica legal de cada país”.
Depois de uma sombria história de ditaduras e violações brutais dos direitos humanos que parecia não terminar jamais em todo o território latino-americano, instituíram-se a duras penas normas multilaterais destinadas a salvaguardar as franquias democráticas comuns - ainda longe de adquirir imunidade contra as investidas da tirania. Precisamente por isso, “a lógica legal de cada país” haverá de merecer o irrestrito respeito dos vizinhos, sim, desde que não atente contra os princípios e as práticas da democracia secularmente espezinhados neste canto do mundo, a começar da liberdade de expressão. Ou desde que não se valha do formalismo jurídico para dar fumaças de legalidade a uma violência - assim reconhecida em todo o mundo civilizado - como a que tirou do ar a RCTV.
Os protestos surgidos na América Latina contra mais essa pedra assentada na construção da autocracia chavista - que alcançaram na própria Venezuela proporções inéditas desde o advento da malsinada “revolução bolivariana” - são alentadores por evidenciar a presença, na região, de anticorpos contra o contágio autoritário, em que pese o chavismo de meia-confecção do dirigente boliviano Evo Morales.
Se é fato que os latino-americanos estão diante de dois modelos de transformação prometida - encarnados por Lula e Chávez -, as políticas atrabiliárias deste último proporcionam ao brasileiro uma nova oportunidade para reforçar a própria imagem, no hemisfério e na arena global, de líder de esquerda capaz de “fazer mais para mudar o mundo” - nas palavras do Guardian de Londres - do que o vociferante venezuelano, cujo esquerdismo é um pobre disfarce para o seu projeto, até aqui vitorioso, de transformar a Venezuela numa ditadura caudilhista.