Levantamento sobre grandes casos mostra um retrato da impunidade no país
Jailton de Carvalho e Alan Gripp
Precatórios, central de grampos, Sudam, Marka/Fontecindam, TRT de São Paulo, bingos, propinoduto, vampiros, mensalão, sanguessugas. Dez dos maiores escândalos na última década são o retrato da impunidade no país. Levantamento feito pelo GLOBO mostra que os 200 políticos, banqueiros, empresários e servidores públicos acusados de fraudes milionárias nesses dez casos estão fora da cadeia e longe de qualquer punição. A grande maioria não passou um dia sequer atrás das grades.
A pesquisa mostra ainda que nove dos dez casos ainda se arrastam nos tribunais, e a perspectiva de alguns procuradores da República é que, quando chegarem a um fim, muitos crimes já estarão prescritos. Na lista, o único caso que avançou resultou na absolvição do réu: o senador Antônio Carlos Magalhães (DEM-BA).
- É para a vala da prescrição que vão todos os processos de colarinho branco no Brasil. É uma vergonha nacional. Uma desmoralização das autoridades que estão empenhadas em investigar e punir os poderosos - diz o procurador da República Artur Gueiros, responsável pela investigação de um dos braços da quadrilha dos Precatórios, escândalo investigado por uma CPI do Congresso em 1997.
Nas duas últimas semanas, O GLOBO analisou os desdobramentos de grandes escândalos em tribunais espalhados pelo país. Excesso de artifícios protelatórios, investigações mal feitas e, principalmente, incapacidade da Justiça de dar andamento aos processos estão entre as principais explicações para a impunidade.
Em apenas três dos dez escândalos, houve condenações em primeira instância. As penas aplicadas aos 34 réus somam 437 anos. Mas todos eles conquistaram o direito de recorrer da decisão em liberdade. No único processo que chegou ao fim, o senador Antônio Carlos Magalhães foi absolvido da acusação de montar uma central de grampos telefônicos na Bahia para espionar adversários politicos. Mas o mérito das acusações não foi levado em conta - o STF determinou o arquivamento do caso por um suposto erro técnico na denúncia feita pelo Ministério Público.
- Fiz uma nova denúncia contra o senador Antônio Carlos Magalhães, mas o STF entendeu que não poderia reabrir um caso arquivado pelo meu antecessor, Geraldo Brindeiro - diz o ex-procurador-geral Cláudio Fonteles.
CASO SUDAM: ATÉ HOJE SEM SENTENÇA
A lentidão do Judiciário aumenta os riscos de prescrição dos crimes, ou seja, o fim do prazo que a Justiça tem para dar a sentença. Foi assim que o ex-prefeito Paulo Maluf livrou-se de ação penal no mais antigo dos escândalos analisados, o dos Precatórios. O caso completa uma década este ano, sem qualquer previsão de um capítulo final, e com chances remotas de resultar em punição. Num outro caso, também de ordem financeira, o ex-presidente do Banco Central Francisco Lopes e outros dois diretores do BC foram condenados a dez anos de prisão por uma operação de socorro aos bancos Marka e FonteCindam, na crise cambial no início de 1999.
Mas nenhum dos condenados está preso. Lopes e ex-colegas de banco recorreram contra a decisão da juíza Ana Paula Vieira, da 6ª Vara da Justiça Federal, no Rio, e estão aguardando o julgamento do pedido em liberdade. O banqueiro Salvatore Cacciola, personagem central no escândalo, aproveitou-se de um habeas corpus concedido pelo Supremo Tribunal Federal e fugiu para a Itália.
Pelos cálculos do Ministério Público Federal, a fraude resultou num prejuízo de R$4 bilhões aos cofres públicos.
- O recurso só deve entrar na pauta de julgamento no segundo semestre deste ano - diz uma auxiliar do juiz Guilherme Calmon, do Tribunal Regional da 2ª Região, no Rio.
Dois anos depois do caso Marka FonteCindam, o país se viu às voltas com as fraudes milionárias da Sudam. O caso forçou a renúncia do então presidente do Senado, Jader Barbalho (PMDB-PA), e implodiu a forte candidatura da senadora Roseana Sarney (PMDB-MA) à Presidência da República (no caso Lunus, que teve origem na investigação sobre a Sudam). Mas, na esfera criminal, o caso tem sido um dos mais retumbantes fracassos do Ministério Público Federal e da Justiça para a punição de acusados de fraudes com dinheiro público.
Roseana foi excluída de um processo aberto na Justiça Federal. Mas ainda há acusações contra Jader e Roseana sendo analisadas pelo ministro Gilmar Mendes, relator dos casos da Sudam no STF.
- A punição é uma atribuição da Justiça, e não do Ministério Público - afirma o procurador-geral, Antônio Fernando de Souza.
Há casos em que o processo criminal sequer foi aberto, como no escândalo dos bingos. Em fevereiro de 2004, um vídeo mostrou o ex-assessor da Casa Civil Waldomiro Diniz cobrando propina do empresário de jogos Carlinhos Cachoeira. A gravação foi feita em 2002, quando Waldomiro ainda presidia a Loterj. Nessa condição, ele também pediu, em troca de vantagens numa licitação pública, dinheiro para as campanhas de Rosinha Garotinho (PMDB-RJ), Benedita da Silva (PT-RJ) e Geraldo Magela (PT-DF). Depois de idas e vindas, o inquérito está na Delegacia de Repressão ao Crime Organizado do Rio (Draco), sem prazo para ser remetido ao Ministério Público.
Durante duas semanas, O GLOBO entrevistou réus, advogados, policiais, promotores, procuradores e juízes para reconstituir detalhes das investigações e mostrar que fim levou cada caso. As entrevistas revelaram que os principais acusados não apenas estão livres como têm atuação pública ou nos bastidores com a mesma força de antes. Entre os deputados acusados de integrarem a chamada máfia dos sanguessugas, por exemplo, pelo menos uma dezena ainda tem cargos-chave em seus partidos.
Outro exemplo: condenados no escândalo do propinoduto, os empresários de futebol Reinaldo Pitta e Alexandre Martins continuam faturando alto com a venda de jogadores para o exterior. Eles são acusados, juntamente com fiscais de renda e auditores da Receita, de enviarem ilegalmente para a Suíça mais de US$33 milhões. O dinheiro, quatro anos depois do escândalo, ainda não retornou ao Brasil.
- Existe um problema estrutural. Só se consegue botar alguém na cadeia com sentença transitada em julgado. Se o sujeito não matou, não estuprou, isso dificilmente acontece. Aliás, mesmo quando mata é difícil - diz o procurador da República Bruno Aciolli, dos investigadores do caso Marka FonteCindam.