AO EXÉRCITO NACIONAL
Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac
(No banquete oferecido pelo Exército, no edifício do Clube Militar - 6 de Novembro de 1915 - Rio de Janeiro)
Não sei como poderei agradecer esta comovedora prova de afeto. Recebeis-me, como vosso, como filho da grande família militar, cuja maior nobreza deve ser sempre a glória, e cuja melhor riqueza deve ser sempre a virtude; e já esta honra me engrandece. Mas, para aumentar a minha dívida de gratidão, colocastes à frente desta manifestação os nomes de três dos mais ilustres generais do Exército; e escolhestes, como intérprete da vossa estima, e como paraninfo meu, um dos meus mais queridos amigos, um irmão bem amado, em cujo espírito e em cujo coração sempre encontrei, nos mais duros dias da minha vida, conselho e consolo, energia e repouso.
A vossa generosidade exagera o préstimo do meu nome e a importância do meu trabalho. Nada fiz, que merecesse tão alto prêmio. O que disse e fiz já estava no pensamento de todos os Brasileiros bons, e já tinha sido proclamado. A lei do sorteio militar, que sempre reputei benéfica para a necessidade da coesão nacional, está decretada há mais de sete anos; e já muitos homens de espírito clarividente e de leal patriotismo, estudando e anunciando os perigos que nos ameaçam, apontaram o remédio e a salvação.
Nada inventei, nada criei. Mostrei de novo, apenas, e com menos brilho, a fealdade da doença do tempo, a desnacionalização da nossa gente, a fraqueza dos governos, o desvanecimento do entusiasmo, a falta da coragem e da fé; e apenas procurei reacender a propaganda esquecida. Acredito que o valor da minha ação nasceu unicamente de uma prospera conjuntura do tempo e do lugar, — da ocasião feliz em que foram pronunciadas as minhas palavras. Cercavam-me corações em flor, espíritos em révora: o ambiente era propicio, de mocidade e de ternura; e a velha Faculdade de Direito de São Paulo ecoava ainda antigos clamores de crença e de combate: a minha revolta ressuscitou, entre aquelas paredes, a grandeza e a febre de campanhas mortas. Assim, o passada e o presente, num encontro milagroso, acolheram, agravaram, e repercutiram com eficácia o meu grito...
Não posso agradecer-vos. Mas posso, ao menos, dizer-vos como vos amo, e quanto me comove e orgulha o apreço que me mostrais. Sois os mesmos soldados, que sempre enobreceram o Brasil, desde a época difícil da fundação da pátria; sois o mesmo exército, que, em todas as crises graves da nossa história, até a proclamação da República, deu às boas causas a sua força material e a sua força moral, nessa longa série de altos serviços nacionais, que o vosso orador acaba de relembrar; quando vos falo, falo ao vosso presente, como ao vosso passado, e ainda ao vosso grande futuro.
Quando nasci, o Brasil vibrava, no apogeu da sua era épica, entre a batalha do Riachuelo e a batalha de Tuiuti. Findava o ano de 1865. Todas as energias do país estavam nos campos do sul. Meu pai, poucos meses antes, partira para a guerra. No lar atribulado e pobre, havia sustos e esperanças, lágrimas e sonhos: as cartas, que vinham do teatro da luta, traziam à família moralmente desamparada sorrisos e raios de fé; mas, entre as raras notícias, enlutava-se a casa, e apertavam-se os corações. Em toda a cidade, a mesma inquieta, cão, o mesmo sobressalto, a mesma alternativa de clamores de júbilo e queixas de desesperação.
Nessa pesada e angustiosa atmosfera moral, correram os primeiros quatro anos da minha vida... Depois, a minha meninice vivencia vossa glória.
As festas que coroaram a vitória, os hinos e as flores que recebiam os batalhões, a paz e a fortuna regozijando a cidade e todo o país, as fardas e as condecorações, os arcos de triunfo e os cortejos, as narrativas dos combates, o desempenho dos vencedores, o orgulho dos mutilados, o entusiasmo dos moços, o enternecimento dos velhos, o enlevo das mulheres, — todo esse espetáculo de heroísmo, dominando a vida nacional, e por muitos anos alimentando a altivez do povo, encheu e maravilhou toda a minha adolescência... Depois, já homem, vi que as vossas espadas, recusando a sua força e o seu brilho à ganância dos mercadores de homens, e defendendo a miséria dos escravizados, apoiaram a dedicação dos abolicionistas, e apressaram a vitória da sagrada campanha...
Depois, encontrei-vos, de novo, na alvorada de 15 de Novembro, e vi toda a vossa bravura e toda a vossa beleza, irradiando, concentradas na figura legendária de Deodoro...
Foi assim que vos amo! Se alguma vez diminuiu a minha admiração, se de algum modo me afastei de vós, foi porque, com tristeza, vi alguns de vós, arredados do nobre terreno e da augusta missão em que sempre deveis honrar-vos e honrar o Brasil, preferirem ao rude e magnífico sacrifício da vida militar o fácil e grosseiro proveito do mando partidário e da pequena política das facções e das intrigas...
Mas o desfalecimento não durou muito. Quase todos os transviados já estão desiludidos e arrependidos. Na consciência de todos deve estar a convicção da inutilidade, e, mais ainda, do criminoso erro dessa dispersão de energias e de devotamentos.
Sei, — e é preciso que todo o país o saiba, — que um hálito saneador e criador percorre hoje todos os quartéis. O pensamento e a ação, o estudo e o exercício, a vontade e a disciplina, animando os oficiais, e deles emanando, inflamam e fortalecem os soldados; o trabalho! e a esperança, a confiança e o estímulo sucederam à inércia e ao desânimo; e, nesse ambiente de agitação fecunda e de reconstrução salvadora, não podem e nunca mais poderão medrar as murmurações, os despeitos, os descontentamentos, as mesquinhas rivalidades, as desmoralizadoras ambições, que só vivem bem nos arraiais do caudilhismo e da desordem.
Deste modo, querendo colaborar com todas as outras classes do nosso povo na grande empresa do revigoramento cívico, que todos devemos iniciar e executar, estais reatando o fio luminoso das tradições militares, que são o patrimônio da vossa classe...
É assim que vos amo! Se praticastes erros, também os praticamos nós, os civis. Se desses erros comuns nasceu o funesto divórcio, que separou durante tantos anos o elemento civil e o elemento militar, nasça agora da confissão e da reparação de todos os desvios e de todas as faltas um consórcio firme e perpétuo. E que este consórcio seja proclamado em palavras e em atos, desde já, enquanto não se organiza a indispensável generalização do serviço militar transformado em serviço nacional, — de modo que, como excelentemente acaba de dizer o vosso intérprete, “confraternizem todas as classes, desapareça para sempre o espantalho do militarismo, seja a nação o exército e o exército seja a nação”.
Já disse repetidas vezes que não mereço, nem quero pretender o papel e o título de apóstolo: o papel é superior ao meu "valor moral; e o título, dado a mim, traria consigo uma ironia, que a minha sinceridade repele.
Já disse também que não sou sociólogo, nem filósofo: não posso idear nem executar um programa de remodelação social. Sou, apenas, poeta, e poeta sincero e patriota.
Se posso ser professor, quero ser e serei exclusivamente professor de entusiasmo. E, dentro deste papel, não serei polemista, nem agitador de ruas, nem conquistador de popularidade. A minha humilde missão está cumprida: a mocidade do país agita-se, todas as classes despertam, os homens superiores estudam o problema, o movimento generaliza-se; posso agora sair da frente da batalha, e entro na massa da legião, casando o meu esforço obscuro aos esforços anônimos dos outros legionários.
Se apareci em evidência, foi porque havia em minha alma uma revolta, que me sufocava. Em minha consciência: acredito que o Brasil está atravessando hoje a mais grave de todas as crises de sua história. Oprime-me um grande medo. Não é o da miséria pública; porque, com trabalho e honestidade, alguns anos bastarão para remediar a devastação causada pela incúria ou pela improbidade. Não é também o da guerra, da invasão estrangeira, da perda da liberdade, da mutilação do território por sequestro ou conquista: tal perigo, se existe ou existir, será talvez o mais afastado c o mais improvável de quantos nos rodeiam; além disso, essa desgraça ainda seria uma fonte de grandes bens: porque, em falta de um perfeito patriotismo coletivo, consciente e coesivo, ao menos há no Brasil, feliz mente, a bravura própria,-o pundonor pessoal, um patriotismo individual; e a guerra, apesar de todos os seus males, seria uma ventura, porque seria uma formidável força de ligação nacional...
O que me aterra é a possibilidade do desmembramento. Amedronta-me este espetáculo: este imenso território, povoado por mais de vinte e cinco milhões de homens, que não são continuamente ligados por intensas correntes de apoio e de acordo, pelo mesmo ideal, pela educação cívica, pela coesão militar; conflitos ridículos sobre fronteiras, dentro da integridade da pátria, explorados pela retórica, envenenados pelo fanatismo, originando guerras fratricidas, a desigualdade entre Estados irmãos, desirmanados pela diferença das fortunas e das prendas, — estes ricos e felizes, prosperando e brilhando, desenvolvendo o seu trabalho e a sua instrução, e aqueles pobres, sem ventura, sem pão, sem ordem, sem escolas, assolados pelos flagelos da natureza ou talados pelos desmandos da governação; e descontentamentos, e rivalidades, e indiferença, desamor, falta de unidade.
” Este é o meu terror. Porque sem unidade não há pátria. Quatrocentos anos de esperança e de tortura fizeram esta nação, dada à humanidade pela continuação de infinitas ações generosas: pelo esforço de um pequenino povo, — menos de dois milhões de almas, em uma estreita faixa de terra, — descobrindo, povoando, explorando, artilhando, defendendo mais de seis mil quilômetros desta costa; pelo ímpeto das bandeiras e pela bondade dos apostolados, desbravando as selvas, as águas e as almas; pelo sangue dos filhos e dos netos dos povoadores, derramado em prol do patrimônio; pelo suor e pelas lágrimas de uma raça mártir, arrancando do solo bruto a riqueza, a felicidade e o luxo; pelo heroísmo de sucessivas gerações, combatendo pela liberdade, pela integridade, pela justiça e pela glória...
É horrível pensar que esta esplendida construção de quatro séculos possa ser desmantelada pela inércia, pela ignorância, pela preguiça moral, pelo egoísmo! Mas, não!
Unamo-nos, nós, os das classes cultas, nós, os que temos instrução, pensa mento e consciência. Unamo-nos, trabalhemos, e venceremos,— e dentro do regime Republicano.
O descontentamento e o desânimo de algumas almas apela para a restauração da monarquia, como para uma panacéia de efeitos prodigiosos e instantâneos. Se o advento de um Messias pudesse agora levantar, rejuvenescer e felicitar em poucos minutos ou em poucos anos todo o Brasil, todos os patriotas, convencidos do supremo poder de tão divino condão, deveriam aceitar de braços abertos esse enviado do céu. Mas os milagres são impossíveis. O trabalho, que nos incumbe, é longo, demorado, difícil.
Não podemos transformar de súbito esta geração que está vivendo. Devemos trabalhar para o futuro: somente outras gerações, mais felizes, gozarão o bem que tivermos criado. Se os únicos remédios para a doença nacional são o tempo, a tenacidade e o devotamento, — porque não empregaremos, nós, os Republicanos, esta terapêutica ao alcance dos nossos meios? Façamos nós a ressurreição da glória do Brasil! Não a podemos fazer em poucos dias nem em poucos lustros, por um prodígio de taumaturgia social. Mas inevitavelmente a faremos, se, inspirados pela nossa crença e pelo nosso patriotismo, lavrarmos a alma do Brasil, como os agricultores lavram o seu campo: com o tempo e a paciência, com a vontade e a arte, dando toda a força do braço e a alegria do coração a todos os longos e sublimes trabalhos que o solo exige, — o derrote e o amanho, a aradura e o alqueive, a semeadura e a rega, — antes do dia nobre em que, coroando e abençoando o sacrifício, surge o esplendor da seara. O programa está assentado, e é simples e velho: a educação cívica, firmando-se na instrução primária, profissional e militar.
Mas não esqueçamos que do ensino devem ser dignos os professores. A educação cívica, devemos ser os primeiros a aprendei-a, meditá-la e praticá-la. Melhoremo-nos, antes de melhorar o povo. Procuremos inaugurar uma nova política, a verdadeira e “sã política, filha da moral e da razão”, nacional e não corriqueira, sincera e digna, condenando e abolindo os artifícios em que vivemos, fraudes eleitorais, fraquezas governamentais, paliativos econômicos e sofismas judiciários.
E não são os políticos os únicos responsáveis pelo descalabro. Quase todos erramos, pecamos, e ultrajamos a Pátria, civis e militares, políticos e homens de letras, professores e jornalistas, artistas e operários, quase todos os pais de família e cidadãos. Uns por maldade ou indiferença natural, outros por afetação ridícula ou tola jactância, outros por imitação, — quase todos desertamos o culto cívico. Esses ainda foram os menos culpados, porque se limitaram ao afastamento do templo: os piores foram aqueles, que, pregando as idéias subversivas e as palavras más, ousaram proclamar a negação da necessidade da Pátria... Eu mesmo, que vos falo, — porque é preciso que eu seja o primeiro a dizer o “confiteor”, — também me envergonho hoje da frívola e irônica literatura, que deixei pelos jornais, muitas vezes eivada do fermento anárquico.
Confessemo-nos todos, arrependamo-nos, e não perseveremos no pecado! A afronta da negação da Pátria, a injúria do desdém, e ainda a frivolidade e a ironia, e até a indiferença e a abstenção, no que se refere- à Pátria, são crimes igualmente graves. A Pátria é o grande “feitiço”, o inviolável “tabu”, que deve ser adorado cegamente, sem ser tocado.
Regeneremo-nos, e voltemos ao culto cívico. Amemos o Brasil, nós que o dirigimos. “E, aperfeiçoados, vamos ao encontro do povo, e aperfeiçoemo-lo. O povo possui energias e virtudes, mais fortes e mais puras do que as nossas: o que cumpre é estimulá-las, é extraí-las, como se extraem os metais da ganga nativa. Nós, que vivemos no litoral, e nas zonas mais acercadas do litoral, nestas cidades, em que fervem o trabalho e a ambição, os esplendores e os vícios, todas as belezas e as fealdades da civilização, não podemos suspeitar a vida que arde no âmago da terra brava.
Neste momento, um de vós, senhores, o coronel Rondon, está prosseguindo a sua longa peregrinação pelo bruto seio das brenhas, Com ele, vai um punhado de heróis obscuros. São, ao mesmo tempo, a bandeira e a missão, as sortidas do século XV e do século XVI, redivivas no século XX. Em cada um desses homens vibra um Fernão Dias e sorri um Anchieta. E, nos rudes sertões, tudo ó mistério, tudo é encantamento, tudo é espanto e riqueza. Nestas maravilhosas entradas de conquista e de catequese, cada passo é uma revelação e uma criação: o descobrimento de um rio, de uma serra, de um aldeamento de Índios; o achado imprevisto de um tesouro natural, a invenção de um recurso para a ciência ou para a indústria; a plantação de uma roça, de um poste telegráfico, de um núcleo de povoação civilizada, de um, rudimento de escola; a colheita de novas forças materiais e morais para o Brasil, — um mundo imenso que jazia em trevas...
Pois bem! A alma brasileira tem a mesma grandeza e os mesmos segredos dos sertões. Não a conhecemos, porque não nos conhecemos. Entremos por ela, empreendamos através dela a grande e deslumbradora viagem da Fé! Descobriremos vertigens e delícias, assombros e consolações, energias desconhecidas me piedades não adivinhadas. Encontraremos a cada passo uma vontade, uma vibração, um, impulso, uma resistência, uma coragem e uma dedicação. E todas estas forças estarão conosco. E, quando regressarmos da expedição magnífica, teremos criado a mais bela e a mais viva de todas as nações da terra.
Peço-vos, senhores, que vos levanteis. Com toda a alma, com toda a crença e com toda a esperança, saudemos o passado glorioso do Brasil, que resplandece em vossos uniformes; o presente sofredor do Brasil, que enche todos os nossos corações; e o futuro incomparável do Brasil, que viverá no orgulho dos nossos descendentes, — a Grande Pátria, que será forte para ser boa, armada para ser justa, e rica para ser generosa!
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