Usina de Letras
Usina de Letras
269 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62152 )

Cartas ( 21334)

Contos (13260)

Cordel (10448)

Cronicas (22529)

Discursos (3238)

Ensaios - (10339)

Erótico (13567)

Frases (50554)

Humor (20023)

Infantil (5418)

Infanto Juvenil (4750)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140788)

Redação (3301)

Roteiro de Filme ou Novela (1062)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1958)

Textos Religiosos/Sermões (6177)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Ensaios-->Brasil - Cadê Você ? -- 05/01/2000 - 16:25 (Dioclécio Luz) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Esta é uma peça de teatro que está sendo montada pelo Grupo Teatral Mapati, de Brasília, para estrear em 21/04/2000.
Trata dos '500 anos do Brasil' que estão comemrando aí.
Outros grupos interesados em sua montagem favor contatar com o autor
___________________
TEATRO

BRASIL - CADÊ VOCÊ

Personagens

MULHER
REI – CABRAL – GENERAL – VISCONDE – FAZENDEIRO – FERDINANDO I e II
BCM – PAPA - CONDE
PRINCESA ISABEL
GRINGO 1
GRINGO 2

O espetáculo deve ser apresentado por poucos atores que se revezam segundo uma linha específica de personagens. Isto é, o ator que faz o Rei deve fazer o General; da mesma forma como BCM deve ser um Nobre da corte, e assim por diante. Nada impede, porém, que outros atores participem, ampliando o quadro de atuantes. Há um meta-teatro envolvido nesta opção. A história do Brasil é apresentada como um teatro em si, onde os personagens mudam mas os atores são os mesmos. Na história do país tanto faz um Rei quanto um general ditador, ou um Pedro Álvares Cabral... A farsa histórica se desvela na “farsa” teatral. Portanto, não se trata de falha do texto que BCM às vezes seja chamado de Magalhães, Maciel, ou Dr. Marinho... E o Rei seja chamado de GHC, ou THC, Ferdinando...

Figurinos
No geral, as caracterizações devem ser feitas com o mínimo de adereços possível. Deve-se adotar, porém, um tratamento absurdo. E exagerar em alguns casos citados no texto.

Cenário
O palco está vazio. O palco é negro. Não há nenhum adereço em cena. Eles vão aparecendo à medida em que se desenvolve o espetáculo.
No início é a escuridão. Uma névoa cobre tudo.

VOZ EM OFF: O que vocês vão assistir agora é uma peça de teatro, uma obra de ficção, portanto. Qualquer semelhança com pessoas ou animais, seres vivos ou mortos, será mera coincidência. Todos os fatos aqui narrados acontecem numa país imaginário que, por coincidência, tem o nome de Brasil.
Pausa.

VOZ EM OFF: Solicitamos a todos os presentes que fiquem de pé para execução do hino nacional. (pausa) É importante que todos fiquem de pé em sinal de respeito ao hino.

BG: Hino norte-americano.

Luz ilumina o centro do palco onde uma mulher, inicialmente de costas para a platéia, fala (ainda com o hino americano de fundo, que se desfaz):

MULHER: Hoje eu sou o que sou. Isto, o que sobrou de mim. O que resta. Sou o Brasil devorado pelo diabo modernista. Minha pele era verde, agora é cinza. Minha alma era livre, agora é presa. Eu sou o que era o vento e a ventania; sou o que eram as praias, o que eram as cachoeiras e a doçura da onça comendo a cotia e observando os índios dançando nus, felizes e tristes, sendo bons e ruins, sendo índios. Eu sou todos os índios mortos na floresta, todos os que foram incinerados na praça chamada Brasil. Eu sou o Brasil sem-terra, sem casa, sem emprego, sem destino. Eu sou, de cada um de vocês, o que há de bom e o que há de miserável. Eu sou o Brasil. Neste momento se desvela minha história.

Sobe som.
(enquanto ela fala, as luzes abrem mais, mostrando o palco)

MULHER: No ano de 1.500 começou o fim do mundo. O Brasil começou a ser comido. 22 de abril. Parece que foi... Foi ontem. Um dia como este. Um dia assim, tão hoje. Era uma manhã bonita. Nós já éramos muitos. Éramos 5 milhões. Ou 50 milhões... Éramos gentes e plantas, águas e bichos. Éramos Brasil. E eles chegaram com suas câmaras globais, neoglobais, neomodernistas. Vieram em naus de madeira boa, em naves espaciais, nos automóveis hidramáticos, eletromagnéticos, cibernéticos, internaúticos, modernos e... tão medievais. O terno era o melhor da Europa, e também o perfume era francês - o melhor, para esconder o fedor que brotava deles.

As luzes baixam.
Enquanto ela fala o palco se transforma.

Sobe som:
Entra Cabral – um personagem em trajes do navegante português, mas com as roupas em frangalhos. Tem um leve sotaque português.

CABRAL: Aqui ergueremos uma nova nação. Sem tesouros, sem riquezas, e também sem outonos - para que as folhas caídas no chão não grudem, pestilentas, às saias rendadas das nossas senhorinhas. Um país sem futuro. Sem destino, também, para que não tenhamos que nos preocupar com os vaticínios, as tempestades e os furacões, o que não existe nem existirá. Claro, um país sem dono para que a pirataria seja o cotidiano. Em nome do rei de Portugal e da Santa Madre Igreja Católica Apostólica Romana, que será nossa parceira hoje e sempre nesse massacre, começa agora o saque à Terra de Santa Cruz, terra de Papagalis, também chamada de Brasil. Quem for neoliberal que me siga!

Sobe som: música apoteótica.
Uma cruz desce do teto, para celebração da primeira missa.
Silêncio.

PAPA(diante da cruz): Eu vim trazer a verdade e a vida. Eu vim para tomar conta desta bosta de lugar e estabelecer o novo reino católico. (Pausa). (Fala como se estivesse diante da câmera de TV; dá uma entrevista, com seu sotaque europeu): Os pobres índios são puros como animais. Ou melhor, são animais, ainda não têm alma os pobrezinhos, por isso vivem assim, na promiscuidade, nus, e com esse mal hábito de se banhar todo dia. Queremos construir aqui a nova civilização, voltada para Deus. E eles serão os nossos servos, nossos escravos; mas, felizardos, porque eliminaremos essa cultura pagã que professam e lhe daremos a fé cristã, salvadora. Construiremos nossas igrejas e nossas riquezas com o trabalho deles, o sangue deles, a alma deles.

Caminha solene, velho, cada fez mais velho, até que se dissolve na penumbra.
Sobe som: música africana. Um batuque.
EM OFF (um grito): Os negros estão chegando!
Silêncio
Depois se ouvem os ruídos de tortura, vozes esparsas: “Confessa, bandido! Negro nojento!” (Gritos de agonia)

Sobe som:

Entra Fazendeiro. O personagem fala como se tivesse alguém ao seu lado, Maciel, que não aparece. Anda rápido, mas tem um corpo imenso.

FAZENDEIRO: É o que digo, eu sempre digo, a vida é um poço anestesiano - quando mais profundo melhor. Veja agora o que nos espera: a boa vida. Reconheça, Maciel, o rei tem sido leal. É um bandido, um cachorro, um filho-da-puta, mas leal. Esta é a qualidade que mais aprecio num homem, a lealdade. Depois a polidez. A polidez é a roupa preferida dos cretinos. Não acha? Não. Você não acha nada. Você é muito acrílico. Tudo que falo você reclama. (caminha no meio da platéia). Pois o rei foi leal. Fez como prometeu. As terras foram distribuídas com seus amigos. Eu e nós. Brasil. Bela terra, não? Não?! Não achas? Olha lá, as araras fazendo ninho nos buritis... E... (é cortado pelo som de um tiro). O quê. Por que fez isso? Matou a bichinha. Você não tem sentimento Maciel. Veja este paraíso. Terra brasilis, aqui em se plantando tudo dá. Largue este arcabuz e escreva, seu biltre descerebrado. Esta frase ficará na história: “aqui, em se plantando tudo dá”. Eu sou um bom fazedor de história. Esta outra, por exemplo... Anote seu pitbull fedorento: “Brasil, país do futuro”. Brasil, país do futuro... Eu sou demais, não é verdade? O resto é tudo burro, neobobo, neobesta. (passeia) Nosso problema são os negros e os índios. Os índios são imprestáveis mesmo, nem para turismo servem. Os negros servem para lavar as latrinas e jogar futebol. As negras, porém, são comestíveis Em resumo, bundas e futebóis. Produto de exportação. Criaremos a Petrobrás para exportar petróleo, e a bundobrás para vender bundas aos gringos. Exportaremos as bundas delas. (ouve-se outro estampido) Você matou um dos meus negros?! Seu biltre. Sabe quanto custa um negro? Uma nota preta. Dólares, meu caro. Muita grana.

Sobe som:

MULHER: Escrevo a história do que está por vir. Escrevo a história da história. A verdadeira, a versão da terra e da chuva, a versão dos papagaios, a versão dos que foram derrotados. A versão de um tempo que não tem pressa, que virou pedra, que se instalou, granítico e espantoso nos nossos dias. Por isso aqui é sempre hoje. Hoje...

O REI caminha entre papéis. O palco está tomado por livros e papéis. Sua roupa está em frangalhos. Ouve-se o zumbido das moscas varejeiras. Enquanto ele caminha e fala, vez ou outra cai um livro do teto.

REI: As chuvas caem há três meses sobre o país. Minhas vacas, coitadas, puras de origem, sangue do meu sangue, sofrem com a escandalosa fartura de lama. O país está coberto de lama. Eu cuspo e não há cuspe - é mangue. (Apanha um papel no chão e lê para si). É um fax antigo. Do ministro da Economia. Diz aqui que necessitamos fazer um Decreto, uma Medida Provisória, que estabeleça regras para venda das nuvens que assolam o país. Precisamos de dinheiro. “Os gringos podem se interessar”, diz o imbecil. Ele acha que é simples assim, para vender basta pregar uma placa nelas, em cada uma das nuvens, e está resolvido o problema. Esta gente se empolga. Porque vendemos o mar, os horizontes, a terra, as árvores, as araras azuis, os sabiás, não significa que há comprador para as nuvens. Ou há? Preciso refletir sobre isso...

Caminha entre os papéis. Aumenta o barulho da chuva. E o zumbido de moscas. Pára diante de uma moldura vazia e se comporta como se estivesse diante de um espelho, arrumando-se...

REI: Sou um rei. Eleito pelo povo de forma democrática. Mais que isso, sou o Estado. O Estado sou eu. Não há outro além de mim. Eu sou o caminho a verdade e a vida. Ouviu meu povo ?! (pausa). Meus inimigos dizem que me demoro no poder. Ora, nem eu nem ninguém pode alterar o que foi escrito no cosmo – eu apenas obedeço as ordens de Deus. (pausa) Mas onde está o destino que não veio se encontrar comigo? Chegamos ao ano 2000 e não vejo o Apocalipse. Estou aqui, eu, eu, eu e minhas amadas vacas, companheiras de pensar, aguardando o fim do mundo e ele não acontece. Ora, por que o tempo se atrasa?

Caminha...
Ouve-se uma algazarra, uma briga de cachorros. Entra BCM

BCM: Majestade...

REI: O que é BCM?

BCM: Vim buscar sua alma, Ferdinando.

REI: Cão danado, alma não tenho mais. Leve a do povo.

BCM: A do povo eu já levei, e vendi, fatiada, para os gringos. Agora eu quero mais. Agora eles querem mais.

REI: Então, Marinho, leve o ar que a gente respira e que faz parte da nossa bandeira.

BCM: Já levei, Ferdinando. A bandeira já era.

REI: Então, Maciel, leve os dias claros, e o ouro das nossas minas...

BCM: Já levei, já levei.

REI: Então, BCM, leve as bactérias, os fungos, os sapos, o orvalho, o bom humor, a bunda, a mãe, o caralho, a puta que o pariu...

BCM: Já levei, já levei, já levei, já levei, já levei, já levei,.. até a puta que o pariu. Rendeu um bom programa especial de fim de ano na minha rede de tevê.

REI: E agora?

BCM: Agora, presidente, só falta sua alma.

REI: Você é esperto, BCM. Quer o bem mais precioso deste país. Vai lhe custar caro.

BCM: Nem tanto, majestade. No seu sangue, bem sabemos, há uma cultura de coliformes fecais. Sua alma é uma latrina, um mictório.

REI: Mas ainda serve como souvenir. BCM, vou lhe dizer, por dentro eu não presto mas por fora eu sou ouro puro.

BCM: Grande frase, THC. É sua?

REI: Sim. Não. Quer dizer, adaptei de uma citação de Max Weber. Ele também diz que, no fundo, todos têm um lado bom.

BCM: Feito Hitler, Pinochet, Mussolini, e você, claro. Preciso contratá-lo para trabalhar nos humorísticos da minha TV.

REI: Não, meu caro, a comédia não me atrai. Eu sou shakespeareano. Poderia até citar uma frase de Rei Lear...

BCM: Não. Por favor, dispenso...

REI: Aquela: você é responsável por aquele que cativa... Mas eu gosto mesmo é de Dante Alighieri: Eu sou o teu pastor e nada te faltará... Divina comédia, capítulo 45, edição de 1934. Ah, mas o que seria de nós sem a literatura no sentido mais elevado, Sidney Sheldon, Ken Follet, Paulo Coelho?... “Desabrida”. Já leu “Desabrida”, BCM?

BCM: Ora, BHC, não tenho tempo para amenidades...

REI: Pois eu tenho, BCM. A poesia é alimento para o espírito. Com a literatura, a sociologia, e o meu rosto bonito, eu mudei este país. Fico feliz em saber que contribui para história do Brasil. Graças a mim o povo brasileiro chegou à modernidade. (feliz, arrogante) Eu preciso de um espelho. Meu reino por um espelho.

Sobe som:
Rei e BCM conversam.

REI: BCM, meus críticos dizem que eu trouxe a fome para o país. Lá no Congresso Nacional, onde você manda desde o dia em que inventaram a roda, ouve-se a voz lamuriosa destes fracassados...

BCM: Bobagem, majestade.

REI: Está bem, há fome, há miséria, mas em compensação estamos num mundo globalizado. Uma coisa é passar fome, outra coisa é passar fome enquanto se assiste corrida de fórmula 1. Como diria Jean-jaques Rousseau, fome é um estado psicológico... Ou seria Diderot?... Ou, foi Maquiavel?...

BCM: Majestade, deixe essa bosta dessa sua sociologia para lá. Não aguento mais essa sua mania de citações.

REI: A fome... A fome sempre existiu no planeta. Não posso fazer milagre. Não há como conter a fome. Um bilhão de famintos no planeta, 32 milhões no Brasil. Mas e daí? Fui eu? Não. É a história. Poderia citar Malthus: “a população cresce exponencialmente e a produção de alimentos aritmeticamente”. É evidente que hoje a produção de alimentos daria para alimentar todo mundo; no passado foi assim, e no futuro deve ser assim, mas tudo isso é, são, exceções, absurdos sociológicos. O natural é passar fome.

BCM: Gostei dessa frase... “O natural é passar fome”. De quem é, RHC?

REI: Acho que é minha... Eu ainda diria mais: não há como tirar dinheiro dos ricos e distribuir com os pobres. Não podemos fazer uma economia Guilherme Tell.

BCM: Mas podemos tirar dos pobres e dar para os ricos...

REI: Claro. Porque ao ajudar os nossos amigos, garantimos a manutenção do sistema financeiro, a instalação de indústrias, a entrada de divisas no país. Mais importante que o bem e seu usufruto é o capital. O importante não é o pão mas a cotação do pão.

BCM: Bonita frase...

REI: Sou bom nisso. Aprendi muito com você, Marinho. Já fui até esquerda, não esqueça. Ou melhor, esqueça...

BCM: Aliás, você também foi ateu...

REI: Fui? Nem lembrava mais.

BCM: Admiro você....

REI: Admira, não. Inveja. Você, como todos os nossos amigos, sonha com isto: mandar na nação.

BCM: De certa forma eu já mando nessa porra. No Congresso ninguém vai ao banheiro sem pedir minha autorização.

Os dois sorriem.

REI: Sempre tivemos tempos bons, não?

BCM: Desde 1500.

REI: O Brasil é um país rico. Enquanto existir Brasil estaremos vivos, cavocando a terra, garimpando o último grão de ouro. Há 500 anos somos assim, fazemos assim. É uma festa que não se acaba.

BCM: Ferdinando, estamos comemorando 500 anos de roubo, saque, furto, exploração, pirataria. Você não se sente feliz com isso, por contribuir com isso?

REI: Claro. Mas você fez mais que eu. Graças a força da sua rede de emissoras o povo que é roubado, expoliado, sacaneado, pirateado há 500 anos, festeja exatamente isto. Você é bom na persuasão.

BCM: Modéstia sua, GHC. Estamos juntos no mesmo barco. Eu faço jornalismo, apenas.

REI: Jornalismo?

BCM: Digamos, um tipo especial de jornalismo...

REI: Estamos juntos há muito tempo. Lembra a revolução de 64?

BCM: O golpe, general. O golpe!

REI: Precisamos reescrever a história. Ainda mais agora que estamos quase pondo um ponto final no destino deste país.

BCM: Não há pressa. Nós fazemos o destino. O destino somos nós, general.

Muda a cor da cena. O Rei põe um quepe e se transforma no General (muda a voz e a postura). BCM, que estava tranquilo, está nervoso.

GENERAL (olhando-se no espelho que não existe): Estou bem assim?

BCM(nervoso): Não. Não está bem. O Brasil está um caos. Precisamos agir. Esse João Goulart quer impor reforma agrária, quer fazer reformas de base. As ligas camponesas explodem no Nordeste. Ora, isso é o comunismo!

GENERAL: Eu sei disso. Sei também que vocês não querem perder a o poder sobre o país.

BCM: Os grandes empresários, a grande imprensa, os grandes homens desta pátria não admitem este rumo.

GENERAL: Mas, o que eu posso fazer? Não posso fazer milagres. Como disse Dostoieviski, em “Irmãos Karamazovi”: vocês o condenam, mas eu não vejo culpa nenhuma nele, lavo as minhas mãos diante da realidade.

BCM: Lavar as mãos não resolve, General. E essa bosta de citação, para o seu Governo, não é de Dostoieviski, mas da Bíblia. Você tem que botar os tanques nas ruas. Tem que derrubar o Governo. Tem que fazer a revolução.

GENERAL: Não é tão fácil assim. (pausa) O que os americanos acham disso?

BCM: Eles mesmos vão lhe dizer. Tem uma comitiva deles aí fora.

GENERAL: Por que não me avisou? Mande entrar. Mande entrar.

Entram os personagens GRINGO 1 e GRINGO 2. Vêem vestidos e armados como mariners.
Diante do General e de BCM param e aguardam.
Sobe som: trecho do hino nacional americano. Todos se perfilam, inclusive o General, que sustenta uma postura marcial.

GRINGO 1: Bom dia, futuro presidente do Brasil. A história o aguarda. (mudando ríspido): O que estão esperando, porra?! Dêem o golpe. Não podemos esperar mais. Ou fazem isto ou nós fazemos no lugar de vocês, como temos feito em outros lugares.

GENERAL: Calma, a conspiração está organizada. O poder econômico e o poder militar estão juntos para derrubar este Governo comunista. Estamos pensando numa boa data, talvez em 7 de maio, ou 13 de agosto, dia do soldado. Aproveitaríamos a festa...

GRINGO 2 (cortando): O caralho! Já enfiamos muito dinheiro nessa merda de país. Financiamos a Aliança para o Progresso; financiamos campanhas de deputados da direita; criamos instituições para garantir nossos interesses aqui; junto com a Igreja Católica promovemos a “Marcha com Deus pela família e pela liberdade”... E agora você vem falar em esperar uma ocasião especial. Ora, vá se fuder, general!

GENERAL: Mas, e se houver reação? Dizem que em Pernambuco Julião tem armas e está pronto para resistência. A mesma coisa falam de Leonel Brizola no Sul do país. Não conhecemos a capacidade deles resistirem ao golpe.

GRINGO 2: Vocês não sabem mas nós sabemos. Já conversaram com Rico Gordon, nosso embaixador no Brasil? Procurem-no. Ele tem respostas para todas as perguntas.

GENERAL: Já estivemos com ele. Conversamos mais ou menos...

GRINGO 1: Como assim?

GENERAL: Ele nos chamou para conversar. Então deixou-nos esperando por mais de três horas, depois entramos em sua sala, e ele só disse uma frase: “João Goulart foi longe demais; dêem o golpe, nós garantimos”. E só. Abandonou-nos olhando um pra cara do outro.

GRINGO 2: Ele tem razão. Vocês são muito medrosos. Nós lhe garantimos armamentos, munição, dinheiro, e até a logística. (entrega um envelope). Aqui tem um plano de ação para vocês. Na costa brasileira já dispusemos a nossa armada. O que falta? Nada. Que dia é hoje? 29 de março de 1964. Não quero mais desculpas. Dêem o golpe em três dias, no máximo.

GENERAL: Pode cair em 1º de abril! O dia da mentira! Não.

GRINGO 1: Ora, porra! Daqui a pouco vai questionar que cai no dia do aniversário de sua sobrinha... Fuck you! Fuck you, general. Estamos falando de um golpe militar, uma mudança na história deste país, e o senhor vem com trivialidades...

BCM (depois de folhear os papéis): Bem, é na madrugada de 1º de abril. Podemos dizer que foi em 31 de março. Ninguém vai saber.

GRINGO 2: Obrigado, Magalhães. O senhor, que sempre foi parceiro nosso, sabe a importância deste golpe. Think you.

BCM: Obrigado é pouco, meu caro. O que quero saber, agora, em nome dos banqueiros, dos empresários, dos industriais do Brasil, é qual a nossa parte nisto.

GRINGO 2: Terão. Claro, of course.

BCM: Quanto?

GRINGO 1: Este país é uma bosta. Mas é rico. Eu vejo tudo isso como uma grande lagartixa. A vocês caberá o rabo.

BCM: Só?

GRINGO 1: Tá ótimo. Daqui a 30 anos o rabo vai valer uma grana no mercado internacional.

GENERAL (preocupado): E o cú? Quem fica com o cú?

Sobe som:

MULHER: O que tenho de meu, nada. O que sobrou de mim, nada. Eu sou só este lamento. Esta dor que ninguém percebe, esta ausência de mim que ninguém nota. Eu sou o silêncio. Eu sou o Brasil. Onde está o Brasil?

Sobe som
Em cena: General e BCM. O General olha-se no espelho.

BCM: Porra, general, os caras querem uma resposta e você aí, admirando sua cara de porco no espelho.

GENERAL: Porco, não BCM! Porco, não! Suíno! Posso até andar como porco, comer comida de porco, ter rabo de porco, viver entre os porcos, mas tomo banho todos os dias e boto desodorante no sovaco. Não cheiro como um porco. Isto é o que importa.

BCM: Caralho! Os gringos estão aí fora e querem a parte deles no golpe.

GENERAL (ainda se mirando no espelho): Os gringos... Quem eles pensam que são?

BCM: Quem? Ora, tudo. Nosso pai, nosso senhor, nosso Deus. Esqueceu? Foram eles, os americanos, que determinaram que derrubássemos João Goulart. Deram armas, dinheiro, estratégia... Derrubamos. Implantamos o regime militar. Agora eles estão mandando até especialistas em tortura para acabar com a resistência da esquerda.

GENERAL: Também dinheiro, inclusive, para que você amplie seus negócios, não é Dr. Marinho?

BCM: Tenho direito. Dei minha contribuição no processo.

GENERAL (irônico): Montou uma rede de televisão com dinheiro americano. Isto é ilegal, Dr. Marinho. Nossas leis não permitem este tipo de acordo.

BCM: Hoje, General, hoje. Vamos providenciar uma alteração da lei e tudo que fizermos será legal. Não é assim que o senhor e seus companheiros de farda tem agido? Fechamento do congresso, atos institucionais... O AI 5 foi o máximo. O senhor pergunta pela legalidade dos meus atos. Mas, o que é a lei? A lei não é um artefato de justiça. A lei é um instrumento do poder. Se o povo estivesse no poder faria leis que lhe agradasse. Mas quem está no poder somos nós. Nós somos a lei. Nós somos a verdade. Nós, através das leis, dizemos o que é certo e o que errado.

GENERAL: E estamos juntos. Não esqueça, Magalhães.

BCM: É verdade. Nós fizemos e vamos fazer muito. Sempre juntos. Por isso você tem se favorecido também, general. Mas eu queria ser norte-americano, são eles que sempre levam a melhor parte.

GENERAL (arrogante): Eles que não se atrevam nos pedidos. Nós temos a imprensa do nosso lado. Não é BCM?

BCM: Imprensa? General, foi até bom tocar nesse assunto. Nós ajudamos a dar o golpe, é verdade, mas vocês milicos tem exagerado. Essa mania de botar censura em tudo quanto é jornal e revista está liquidando com os nossos negócios. Você está enforcando os seus aliados. Somos amigos, general.

GENERAL: Amigos?... Cuidado com os inimigos mas tenha muito mais cuidado ainda com os amigos, dizia Maquiavel.

BCM: Maquiavel, uma porra! Você e sua citações. Essa bosta de frase é da Seleções de Reader Digest.

GENERAL: Eu sou um homem de leitura, não duvide BCM. Um dia ainda entro na Academia Brasileira de Letras.

BCM: Entra mesmo. Até eu já entrei...

GENERAL: Mas, deixemos de conversa. Vamos saber dos gringos. (grita para as coxias) Segurança, mande entrar os americanos.

Entram GRINGO 1 e GRINGO 2. Novamente vêem vestidos e armados como mariners, mas o tempo inteiro se comportarão como diplomatas.
Diante do General e de BCM, como na outra cena, param e aguardam.
Sobe som: trecho do hino nacional americano. Todos se perfilam, inclusive o general, que sustenta sua postura rígida.

GRINGO 1: É uma honra para nossa pátria poder discutir o futuro desta nação, agora livre do perigo comunista.

GRINGO 2: Saiba Vossa Excelência que agora que conseguiu eliminar todos os focos de guerrilha no seu país, o nosso presidente estima sucesso para este povo e esta nação...

GRINGO 1: Exatamente por isso nosso país se coloca à disposição do povo brasileiro para ajudá-lo no caminho da justiça e da liberdade. E para construção desse ideal de mundo livre. Vossa Excelência foi designado pela história para construir esta nação do futuro, pode contar com nossos préstimos financeiros.

Sobe som: hino nacional americano. Mais uma vez todos se perfilam.

GRINGO 1: Nós viemos lhe oferecer dinheiro. Também vamos lhe dar nossa tecnologia, nossa cultura, nosso modo de vida, nossos produtos,... Enfim, a certeza de um país melhor no futuro.

GENERAL: Eu acho...

GRINGO 1: Pense, general, o senhor será lembrado pela história como o homem que eliminou do país o perigo comunista e o colocou na modernidade. Pois está na hora de fazer o milagre econômico. É hora de dar mais um passo em direção à modernidade. Vamos construir hidrelétricas, pontes, grandes estradas... E não se preocupe com o dinheiro, a gente empresta. Depois vocês pagam.

GRINGO 2: Todos os militares que estiveram conosco nessa luta sagrada serão reconhecidos pelo nosso governo.

GRINGO 1: Agora que acabou a guerra suja, não há mais necessidade da nossa nação enviar torturadores ou assassinos para resolver os problemas da América latina. Agora é a hora de crescer! O futuro vem aí.

Sobe som: hino nacional americano. Novamente todos se perfilam.

GENERAL: Crescer como?...

GRINGO 1: Inteligente o general, não John?

GRINGO 2: Muito inteligente, Michael. Big question.

GRINGO 1: Como crescer? Juntos. John, cadê o mapa dessa bosta, digo, desse magnífico país? Vamos mostrar como os Estados Unidos podem colaborar com o crescimento de vocês.

Abrem um mapa.

GRINGO 2: Veja general, a Amazônia. Nós a queremos.

GRINGO 1: Sim, e também o cerrado, a caatinga, os pampas gaúchos, a mata atlântica, o Pantanal. A madeira nos interessa e, of course, os minérios.

GENERAL: Tudo?!

GRINGO 1: Não. As muriçocas, a malária e a dengue não nos interessa. Veja aí como é que vocês aproveitam. Ah, sim, em troca vocês compram nossos automóveis, a coca-cola e todo lixo que produzirmos em hollywood.

GENERAL: E o produto nacional? Temos que valorizar.

GRINGO 1: Claro, claro. Muito justo. Nossa sugestão é de que o Brasil, enquanto exportador de bundas, crie um novo gênero musical baseado na bunda. Mas dêem um nome exótico. Por exemplo, bunda music.

GENERAL: Ah, não. Isso não vai dar certo.

GRINGO 2: Vai sim. Acredite, nós não entendemos de arte, mas sabemos tudo sobre economia.

BCM: Vão querer as telecomunicações também?

GRINGO 2: Of course. Mas não agora. Também o petróleo, a Vale do Rio Doce, a zona costeira, os rios, os parques nacionais.

GENERAL: Tudo?!

GRINGO 1: Of course. Mas não de uma vez.

GRINGO 2: Neste momento a gente só quer uns pedacinhos de terra, e emprestar dinheiro para vocês.

BCM: Ah, bom, eu estava preocupado.

GRINGO 1: Senhores, estamos discutindo tudo diplomaticamente. Aqui não há nada imposto. Nós respeitamos a soberania dos povos.

GRINGO 2: Só invadimos quando exageram nesta soberania. É natural.

BCM: Está bem, pegamos o dinheiro emprestado de vocês, mas o que eu ganho com isto?

GRINGO 1: O senhor, Doutor Marinho, mister BCM, certamente vai crescer conosco. O senhor sempre esteve conosco. Por que trataríamos mal um aliado tão fiel? Este é um país rico e, com a nossa orientação, saberá distribuir corretamente sua riqueza. Na história desse país sempre houve gente como o senhor. Não se preocupe que não é nossa pretensão alterar o curso da história. Pelo menos enquanto ela nos agradar.

GENERAL: Quanto a mim?

GRINGO 1: Os militares merecem um tratamento diferenciado, é verdade. Pinochet no Chile, que matou Salvador Allende com o nosso apoio; Alfredo Stroessner, no Paraguai, Rafael Videla na Argentina, Médici e Geisel, e todos os outros do Brasil, todos enfim, serão recompensados. Não é problema. Todos vocês que foram colocados por nós se darão muito bem.

GRINGO 2 (saindo): Muito bem. Estamos indo. Foi um prazer debater com Vossa Excelência, os destinos deste país. Estamos à disposição para colaborar onde for necessário.

BG: hino nacional americano. Novamente se perfilam. Os dois saem.
Black out.

Sobe som: “Este é um país que vai pra frente”...

GENERAL: É isto, Maciel: poucas palavras mas o necessário. Por isso admiro os americanos, eles sabem convencer. Quando não podem com as palavras podem com as balas. O importante é isto, sempre, o poder. (pausa) Como invejo os generais deles, sempre durões, machos, fortes; em todos os cantos do planeta, impondo a democracia que lhes interessa. Como os invejo. (pausa) Talvez possamos ajudá-los mais.

BCM: Como assim?

GENERAL: Não sei... Promovendo, quem sabe uma maior integração cultural e ideológica. O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil.

BCM: Grande frase.

GENERAL: Eu penso em algo por etapas. Por exemplo, numa primeira fase estimularíamos as lojas, o comércio, os bares, a adotarem nomes em inglês... Enquanto isso estimularíamos nossos jovens a consumirem a cultura deles: a música, a dança, as roupas, os filmes... Obrigaríamos as nossas crianças a visitarem a Disneylandia...

BCM: E depois, General?

GENERAL: Bem, o inglês seria oficialmente considerado a segunda língua nacional. (sorri).

BCM: E então?

GENERAL: Na terceira e última fase a bandeira brasileira seria substituída pela americana. O hino americano seria considerado o hino nacional brasileiro, e o Brasil seria oficialmente um Estado, mais exatamente, um sub-estado americano. Que tal?

BCM: A idéia não me parece boa.

GENERAL: Não?

BCM: Enquanto não souber o que eu levo nenhuma idéia será boa.

Sobe som:

VOZ EM OFF: Atenção para os números finais do golpe militar de 1964. Exilados: 10 mil. Acusados de subversão: 7.387; cassados: 4.682; mortos e desaparecidos: 300.

Sobe som:

MULHER (fala sob a neblina): Sempre fomos um país na neblina. Meu rosto é oculto pela brisa e pela umidade. Minha sina sempre foi oculta. Por isso, de longe não se notam meus lábios de vermelho carmim, o ruge escarrado feito uma pedra rosa que brota na minha face, meus seios que murcham e despencam sobre meu ventre seco,... Eu sou o Brasil. Sou a mulher expulsa de casa e feita prostituta. Eu sou o Brasil. Todos me levam, todos me vendem, todos me comem.

Sobe som.
Voltam o Rei da primeira cena e BCM.

REI: Eles sempre levam vantagem em tudo, BCM.

BCM: Nós também, Ferdinando.

REI: Mas o importante é estarmos vivos, fazendo a história. Eu. Eu e o meu gado.

BCM: Sim, claro, este rebanho de girolanda pastando no palácio... Estamos almoçando e aí vem uma vaca e, pá!, mete a fuça no camarão a la fronchet. No jantar, quando vai beber a sopa, slaap!, o boi passa a língua antes de você. Sem contar que você tá no banheiro cagando e de repente batem na porta. Você grita: “tem gente”. Batem de novo. E você: “tem gente, porra!”. Batem mais uma vez. “Caralho, não se pode nem cagar em paz!” Aí a porta é derrubada de uma patada e aparece um boi olhando nos seus olhos. Você pára de cagar e olha pra ele, naquela situação difícil.

REI: Bobagem. Magalhães. Ter o gado no palácio é só uma mania minha, coisa de intelectual. Você também não tem as suas. Tudo isto será registrado pela história. (Fala como se ao lado estivesse o biógrafo): “No final dos tempos, eis que o presidente, dotado de grande inteligência e pendores ecológicos, inspirado nos relatos de Marco Polo e Saint Exupery, tinha por hábito ecológico conviver entre animais exóticos. Um grande homem, um ser magnânimo, supra-sumo da inteligência – escreva aí em negrito, seu bosta! – restaurou o animalismo ontológico em seu palácio, permitindo que os bovinos, ruminantes de cérebro avançado, convivessem antropologicamente com os outros seres.” Tudo é muito claro BCM?

BCM: Sim majestade...

REI: Ah! Você é tão burro quanto as outras pessoas destes país. Por isso precisa de mim para comandá-las.

BCM: Você anda muito arrogante de uns tempos para cá. Cuidado, hem. Não esqueça do seu antecessor. O outro, seu mestre, foi ficando arrogante, arrogante, não fez como queríamos e nós o tiramos.

REI (sério): Sei disso... Mas ele era jovem demais, audacioso, ambicioso. Não tinha a minha maturidade, a minha formação intelectual.

BCM: Maturidade ou não, se você passar dos limites nós o degolamos. E fazemos como antes, damos a entender que foi o povo que o tirou. Veja como ficou escrito na história: o povo provocou o processo de empeachement do presidente corrupto. Nós o colocamos no poder, nós o derrubamos. Entenda, caro THC, nós somos a história. Ou você está conosco ou está demitido do tempo.

REI: Não! Isso não. Nós estamos juntos, claro, sempre estivemos. Por que agora seria diferente? Lembra de 7 de setembro de 1822?

Sobe som: Hino nacional brasileiro
O personagem que faz o REI bota um chapéu, coloca um leve sotaque português e se torna D.Pedro I. BCM se torna o CONDE.


D.PEDRO: Ai, ai, ai. Só ouço notícia ruim no palácio. Só ouço o ronco surdo da multidão. Deixem-me em paz. Eu e os meus livros. Eu só quero ler e me olhar diante do espelho. É querer demais?

CONDE: Estão ocorrendo levantes. O povo está insatisfeito, alteza.

D.PEDRO: Ai, ai, ai. Eu sei, Conde. Há pouco tempo um tal de Beckman provocou uma revolta no Maranhão contra a Coroa. Nas Minas Gerais fizeram a Guerra das emboladas.

CONDE: Emboabas, Pedro I. Emboabas.

D.PEDRO: Em Pernambuco os ricos de Olinda e os comerciantes do Recife entraram em guerra também. Foi a guerra dos mascates. Nas Minas Gerais um dentista maluco apoiado por uns poetas quis separar o Brasil de Portugal. Na Bahia outros fizeram levante. Mas isso virou uma zona! O que devem estar falando de nós em Portugal? Já pensou no fuxico que corre na corte portuguesa. (imita uma dama portuguesa): “o Brasil é terra de selvagem mesmo, lugar de índio e negro, veja quanta briga que há”. Imagine, terra de índio e negro. Que escândalo. Que vergonha. (pausa) Conde Marinho, já sei o que fazer. Já tomei a decisão: vamos exterminar os índios e os negros. Esta é a solução para o Brasil.

CONDE: Dom Pedro I, se fizer isso vai eliminar 98 % da população... E não vai ter quem lhe abane nos dias de calor, nem quem jogue sua bosta imperial dentro do mar.

D. PEDRO: Ai, ai, ai, isso não! Mas, se não podemos acabar com os índios e os negros, qual a solução?

CONDE: Vim exatamente por isso, Pedrinho. Já decidimos: você proclama a independência do Brasil!

D.PEDRO: O quê?!

CONDE: Pedro I, não temos alternativa. Temos que sair do inútil domínio português. Portugal não manda mais em nada. O que sai daqui apenas é carimbado em Portugal, a mercadoria segue para Inglaterra que depois a revende ao mesmo Portugal por preços elevados. Quem está enricando é a Inglaterra não é Portugal. Quem manda é a Inglaterra.

D.PEDRO (com medo): Ai, ai, ai...

CONDE: Portugal já era, bicho... Não temos que bancar a decadência dos portugueses.

D.PEDRO: Quem nos apoia?

CONDE: A elite. Quem manda aqui e na Inglaterra: os nobres brasileiros e os nobres ingleses.

D.PEDRO: Uau! Então não há problema? Espere... E os nossos amigos em Portugal? E o meu pai?

CONDE: D.João 6? Ora, o rei de Portugal não está interessado no Brasil. Ele veio para cá com seus nobres conforme um acordo com os ingleses. Foram 36 navios somente com gente fina portuguesa. Ratos de pedigree. Ele veio, e, como parte do acordo, abriu os portos às nações amigas, isto é à própria Inglaterra.

D.PEDRO: Foi embora no ano passado, coitado. Tenho saudades de Lisboa... Acho que vou embora também. Aqui faz muito calor.

CONDE: Foi embora e lhe deixou este abacaxi. Mas também a solução. D. Pedro I, Portugal não existe mais. Portugal é colônia como nós. Já conversamos com os ingleses que é quem manda no mundo hoje. Eles estão do nosso lado.

D.PEDRO: Bem se é assim, diga ao povo que fico.

CONDE: Gostei dessa frase. Podemos usá-la como propaganda.... Mas não agora. Agora temos que fazer a independência do Brasil. Nosso grupo - os donos de terra, os comerciantes mais ricos, os nobres - já decidiu. Portanto, faça.

D.PEDRO: Ai, ai, ai... Eles querem mesmo?

CONDE: Claro.

D.PEDRO: Ai,ai, ai... Tem certeza?

CONDE: Absoluta.

D.PEDRO: Está bem. Então farei. (pausa) Mas, afinal, como é que se faz a independência? (pensativo) Eu nunca fiz isso... (pausa) Já sei, vou mandar um requerimento a Portugal. “Papai, venho mui respeitosamente requerer a independência do Brasil. Nestes termos peço deferimento”. Que tal o texto?

CONDE: Isso é o de menos, D. Pedro I. O importante é o marketing.

D.PEDRO: O quê?

CONDE: Vamos fazer isso ao ar livre. Na frente do povo. Ali, por exemplo, onde corre o riacho do Ipiranga. Vamos botar um pintor lá e retratar o momento histórico.

D.PEDRO: O quê? Junto do riacho? Nadinha. Tem muito pernilongo, muriçoca, micuim, mosquitinho. Não vou mesmo, Conde. Fazer a independência eu faço mas ninguém me obriga a ir pra beira de um riacho fedorento. Tô fora, bicho. Independência desse jeito é morte.

CONDE: Isso! Eis a frase que eu buscava para o momento. A frase de um herói. Você a disse D. Pedro I.

D.PEDRO: Eu disse?... O quê?

CONDE: Escreveremos nos livros de história. Os jovens aprenderão nas escolas e a repetirão à exaustão. A frase de um herói da pátria...

D.PEDRO: Que frase, porra!

CONDE: Independência ou morte!

D.PEDRO: Eu disse isso?

CONDE: Não exatamente. Mas não importa. Foi quase isso.

D.PEDRO: É... Gostei. Independência ou morte... Independência ou morte... Bonita... Mas, peraí, Independência ou morte, o caralho! Eu não vou morrer por causa dessa bosta de colônia de jeito nenhum. Tô fora! Tô fora!

CONDE: Calma, calma. Você não precisa morrer. Nem vai morrer. Está tudo sobre controle. É só uma frase. A frase de um herói. Você será o herói do Brasil.

D.PEDRO: Tá bom. Um herói é legal... Mas para beira do riacho eu não vou.

CONDE: Não se preocupe. Mandaremos alguns dos nossos, sua escolta oficial, e depois o pintor acrescenta você ao quadro numa pose heróica.

D.PEDRO (desembainhando a espada, posando arrogante): assim, por exemplo...

Sobe som

MULHER: Este vento que percorre as montanhas do meu país tem a cor azul. Vejo e posso tocá-lo com minhas mãos rugosas, mãos que lutaram anônimas contra isto aí... Só o vento e as pedras sabem quantos filhos meus morreram pelo Brasil, por mim. Quantas guerras, quantas palavras... Sim, as palavras... Ainda escuto-as como bandeirolas tocadas por este vento. Escuto também as pedras... E elas contam que o que foi escrito é mentira, a história é outra. E se lamentam: ah se eu pudesse falar, ah se pudesse caminhar e subir as montanhas, ao topo do mundo, no Everest, a 8.848 metros, para dizer o que ainda não foi dito. Ah se eu tivesse olhos... Mostraria neles a alma que está sendo torturada, a vida que está sendo destruída. O coração de uma pedra, agora sei, soube através do vento, meu confidente e oráculo, o coração de uma pedra é suave. O que pesa é o tempo, com sua obesidade e sua teimosia, aí parado, com sua pele de sapo, escamoso, olhando pra gente, devorando nossos sonhos mais sólidos e nossas paixões mais tênues.

Sobe som: canto gregoriano

O Rei está só no palco. Ouve-se o zumbido das moscas e uma goteira... Ele caminha solitário e se deita num divã de psicanalista.

REI: Vivo cercado por papéis. Eles me perseguem. Eles são eu. Meu patrimônio são os papéis. No mundo não existe nada a não ser papéis.

VOZ FEMININA EM OFF (tonitroante): Finalmente nos encontramos.

REI: Quem é?

VOZ: Ora, quem poderia ser?

REI: Deus?

VOZ: Mais ou menos?

REI: Como, mais ou menos?

VOZ: Como eu não sei que você acredita em mim...

REI: É verdade. Que bosta. Ainda mais que é uma mulher.

VOZ: Deus é uma mulher, não sabia.

REI: Ora, que idiotice. Se existe, Ele é homem.

VOZ: É mulher e negra.

REI (irritado): Não digas blasfêmias!

VOZ: Ora, Ferdinando, Deus não poderia ser uma mulher e negra?

REI: Jamais! Os deuses são os homens. Os homens são deuses. Você
agride a história e o bom senso.

VOZ: Pouco importa. Agora eu sou apenas sua analista. Pode falar.

REI (aliviado): Eu gostaria de falar sobre mim.

VOZ: Não é novidade, você só pensa em si.

REI: Sem ironias, por favor. Seja Deus ou o caralho não admito ironias.

VOZ: Está bem. Continue.

REI: Às vezes, às vezes eu acho que não existo. O poder me dá esta sensação de solidão. Parece que estou sozinho no cume da montanha. O poder é um poço de solidão. Adorável alucinógeno e horroroso tempo de solidão. Mas eu amo isto.

VOZ: O país está uma bosta, atolado num buraco sem fundo, e você preocupado unicamente com o seu umbigo.

REI: Não é isso! (choroso) Você não sabe como foi minha infância.

VOZ: Ah não, Ferdinando. Por favor. Um homem dessa idade chorando porque não teve infância?

REI: Porra, seja um pouco menos Deus e mais psicólogo. Afinal, isto aqui é um divã. Vim aqui para me analisar e não para dar nomes e endereços as minhas culpas.

VOZ: BHC, você já pensou em se matar?

REI: Todos os dias. Mas, não iria adiantar. Eu nasci para ser imortal.

VOZ: E matar, majestade? Você mataria alguém?

REI: Sim. Se for preciso. Há casos...

VOZ: Por exemplo?

REI: Para modernizar este país tivemos que matar índios e negros. Isto é sociologia. O trem da história não anda com rodas quebradas. Mais recentemente algumas pessoas morreram de fome, por falta de pão ou emprego - foi necessário, para garantir um país sem inflação.

VOZ: Você jogou o Brasil no precipício...

REI: Não exatamente.

VOZ: Gostaria de lembrar que está falando com o seu analista, não use as palavras como trincheira.

REI: Porra. O que eu queria dizer é que tínhamos que colocar o país dentro do cenário mundial da globalização. Não havia alternativa.

VOZ: Você tornou o Brasil uma ficha no cassino que chamam de bolsa. O Brasil – seu povo e sua riqueza – tornou-se mercadoria nas mãos de jogadores sem escrúpulos. O Brasil virou uma puta – todo mundo come, uns pagam e outros não. Puta nas mãos de gigolôs que dominam o mercado financeiro. Você fez isso.

REI: Não! Quem fez isso foi o destino. Porque, insisto, não havia alternativa.

VOZ: BHC, você está dizendo que só existe a proposta neoliberal? Você não acha possível haver uma outra via? Se viesse do seu antecessor até acreditaríamos. Mas você é sociólogo. E não é burro. Em compensação tem sangue de nobre - sua alma, que foi curtida na visão de uma corte medieval, jamais conviveria com algo parecido com o socialismo.

REI: O muro de Berlim caiu sobre a última utopia.

VOZ: Mentira. Caiu uma. Ou caiu outra coisa. Mas você escolheu a não-opção, a não-utopia, o que há de mais velho neste planeta. Cometeu um crime histórico. De todos os bandoleiros que já comandaram este país, você talvez tenha sido o que mais teve consciência do crime

REI: Por que escuto você? Eu sou Ferdinando II, o rei deste país. Não tenho que dar satisfações a ninguém.

VOZ: Os tiranos, os déspotas, não têm crise de consciência. É sua sorte. Ou estaria condenado a sofrer de remorso até o fim dos seus dias.

Sobe som:

REI conversa com BCM.

REI: Não sei se você vai entender, Magalhães. Mas preciso falar com alguém sobre isso. É algo que me angustia...

BCM: O que é?

REI: Minhas vacas.

BCM: Qual o problema?

REI: Não tem problema.

BCM: Se não tem problema então...

REI: Quer dizer... É algo muito particular. Uma expectativa minha em relação a elas.

BCM: Já sei. Está comendo uma delas e tem receio de estar grávida?

REI: Não seja grosso, Maciel. Falo sério.

BCM: Fala Ferdinando.

REI: Você sabe como elas são? Quer dizer. Como elas ficam... Pensando. Elas comem o capim ou ração e depois, o dia inteiro, ficam lá, quietas, pensando. Pensando. Pensando...

BCM: E daí?

REI: Eu fico imaginando: no que elas tanto pensam? Na condição humana? Na existência bovina? Mas elas não falam, porra! Não dizem nada. Só pensam. Pensam. Que grandes conhecimentos filosóficos terão armazenado? Talvez superem os filósofos ocidentais: Kierkegaard, Nietzsche, Platão,... Mas elas só pensam. Elas não falam nada! Nada! Às vezes me tranco com elas no quarto e mando avisar que não estou para ninguém. E fico lá, sentado, esperando, aguardando que digam as grandes verdades filosóficas... Digo: parla! Parla, porra! Mas nada. Até quando terei que ficar ali, aguardando?

Sobe som:

Rei se troca. BCM está ao seu lado. Usam vestes do século 18. Eles se tornam dois novos personagens: Visconde e Conde.
Estão preocupados. Aguardam ansiosamente a Princesa Isabel. Finalmente ela entra. Como a peça decorre dentro de um caráter pirandélico, convém fazê-la imensa, gigantesca, ocupando todo palco. Pode-se descer do teto somente o traje imenso, que se encaixa na atriz que faz a Mulher.

Os dois cumprimentam:

CONDE: Minha amada princesa Isabel...

VISCONDE; Minha adorada princesinha...

PRINCESA: Princesinha o caralho! Vocês quando querem algo sempre vem com esta raparigagem pra cima de mim.

CONDE: Não exagere princesa. Nosso amor é incondicional.

VISCONDE: Nós nos amamos.

PRINCESA: Vamos ao que interessa... Interromperam meu sono, meu descanso. Está bem, onde é pra assinar?

O CONDE entrega-lhe um papel. Ela assina. E vai saindo.

PRINCESA: Agora deixem-me em paz. (voltando-se) Mas o que foi mesmo que eu assinei?

CONDE: A libertação dos escravos.

PRINCESA (espantada): O quê?! Libertar os negros? Você está louco? Quem vai cuidar de nós? Quem vai trabalhar de graça nos engenhos? Quem vai produzir açúcar e ouro? Quem vai escovar os meus lindos cabelos? Libertar essa negrada vagabunda pra quê?

CONDE: Calma princesa Isabel. A decisão não é sua. Ela veio da metrópole. A Inglaterra nos apoia. Ou melhor, a Inglaterra quer assim.

VISCONDE: É a globalização, querida.

CONDE: Alteza, não percebeu ainda que no mundo inteiro não tem mais escravidão. Não compensa economicamente. O assalariado trabalha mais e melhor, e ainda é um consumidor dos nossos produtos. A Inglaterra decidiu que precisa de consumidores e escravo não é consumidor. Além do mais o nosso açúcar, produzido com escravos, está saindo mais barato que o deles, produzido nas Antilhas com assalariados. Isso não lhes agrada. Nestes tempos de globalização não podemos concorrer com quem manda em nós.

CONDE: Já estabelecemos a Lei do ventre livre em 1871, quem nascesse filho de escrava estava livre. Depois, em 1885, a Lei do sexagenário, quem tivesse mais de 60 anos também estava livre também. O próximo passo é abolir a escravidão.

PRINCESA: Eu não gosto disso. Esses negros não prestam, têm sangue ruim, nem gente são... Deixá-los soltos por aí é perigoso. Lembre-se que fizeram vários quilombos neste país. Ousaram nos encarar.

VISCONDE: É verdade, o de Palmares, na serra da barriga, em Alagoas, durou 70 anos. Teve mais de 50 no Brasil. Tivemos que eliminar a base do canhão e baioneta. E ainda há outros por aí nos desafiando. Sem contar um movimento abolicionista entre o povo...

PRINCESA: Por que não matamos todos de uma vez. Ou os jogamos ao mar para os tubarões.

VISCONDE: E os índios? Também são obstáculos ao avanço deste país.

PRINCESA: Ora, joga-se também. Não podemos é deixar que o Brasil se torne negróide ou selvagem. Atenção, providencie: vamos continuar incentivando a vinda de brancos para este país. Mais alemães, mais italianos, russos, polacos... Temos que embranquecer o povo. Além de oferecer trabalho nas indústrias nascentes, vamos oferecer terra, insumos, no sul do país. Viva a reforma agrária!

VISCONDE: E quanto aos negros, Princesa Isabel?

PRINCESA: Entendo o argumento de vocês. Têm razão. Eles que se fodam! Com a abolição ficarão sem trabalho, sem casa, sem terra. Divulguem desde já que todo negro é ladrão e bandido. Nossa polícia, preferivelmente, deve prender o negro. A partir de agora todo negro é suspeito.

CONDE: Mas não diremos que a idéia foi sua. Esta, pelo menos.

PRINCESA: Não?

CONDE: Claro que não. Diremos que a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea por um sentimento humanitário e atendendo a reivindicação do povo brasileiro. Vossa Alteza promoveu a abolição dos escravos por uma questão de direitos humanos, em respeito à vida e aos nobres princípios cristãos.

PRINCESA: Muito bem, e o que eu ganho com isso?

CONDE: A história, princesa, a história. Nas escolas serás reverenciada como a princesinha dos oprimidos, aquela que tirou os negros da escravidão, uma heroína nacional. Seu nome estará nas ruas e praças, nos colégios. Seu busto ficará em bronze e aço por todo canto deste país. Estamos em 1888, mas até o ano 2000, quando finalmente se descobrirá a farsa, as crianças deste país, negras e brancas, inocentes, dirão “muito obrigado Princesa Isabel por nos ter livrado da escravidão”.

A princesa sorri, feliz, vaidosa...
Sobe som:

MULHER: Olho para dentro de mim e vejo que ainda sou selvagem. Isto é o que temos de melhor: a selvageria. Basta de bons modos! Basta de civilidade! A civilização nos trouxe o cancro, a sífílis, a TV Globo, a gonorréia e o papai noel. Muitos de nós ocultou a onça que havia em seu peito, se rendendo à moral e aos bons costumes do velho e ultrapassado mundo. Uma moral que fede a mofo e mijo de barata. Mas, muitos de nós, muitos de mim, também disseram não. O Brasil disse não. E eu, que às vezes me acho morta, acabada, então sinto que vivo. Sim, estou bem viva nas ruas, nos corredores do tempo, lutando contra a maldita história que querem nos impor. Quando os bandidos chegaram aqui em 1500 disseram dos rebeldes: “índios radicais, por que não se submetem à modernidade? Por que não aceitam, o diálogo?” Mais tarde, disseram aos escravos fugidos: “negros radicais, por que não se adaptam aos grilhões que lhe colocamos no pescoço?” E foi assim sempre... E sempre... e sempre... Sempre pareceu-me que o tempo não andou. Por isso, quando, recentemente, veio o golpe de 64, quando as botinas atingiram-me no coração, eu pensei: eis os militares fazendo o que sempre quiseram fazer, o que sempre fizeram – defendem os interesses das elites. E mais uma vez eu morri. E então aqueles que lutaram contra os bandidos foram também chamados de radicais. “Guerrilheiros, subversivos, por que não aceitam a democracia e a modernidade?”
Agora, hoje, este hoje que corre por aí, feito um rio sem dono, feito uma chuva de vento, feito um domingo de finados, este hoje, nele se ouve isto: “radicais, por que não dialogam conosco? Eles, que jamais permitiram ao povo a cidadania... Eles que todos os dias, diante do povo, da TV, me estupram,... Eles, que sempre quiseram e fizeram a miséria deste país... Eles chamam meus filhos de radicais. Ah, pátria Brasil, não verás outra gente como esta, tão voraz e tão rapina, e sempre e sempre, trazendo-nos o bem e a modernidade, e dizendo para aqueles que lutam contra isto que são radicais... Eles, tão poucos, tão senhores, é que são os do diálogo e da modernidade. Nós – o Brasil - somos atrasados e primitivos. Pois deveríamos ser mais primitivos. Deveríamos ser selvagens. Isto é, onça, pedra e água correndo; chuva e vento e frio; terremoto e furacão. Basta de civilização, senhores do tempo. Do que precisamos é de saúde.

Sobe som:

REI: Eu sou o Rei. Eu não questiono o tempo. Não questiono as ações, a história. Eu sou o destino: tenho o tempo, a história e as ações dentro de mim. As pessoas morrem, de fome, de miséria, porque assim quero, porque assim deve ser. Eu preciso do poder para fazer isso. E para me fazer: ser o que sou: um homem que tem escrúpulos na hora certa, entre os amigos. O poder me dá a imortalidade, a vida para sempre. Por ele dou meu cavalo mais nobre, minha mulher, meu cachorro, minha alma. Entre eu e ele não pode haver nada nem ninguém. Quanto mais um país, uma nação, um povo. Talvez por ser humano, demasiadamente humano, tenha esta sede de poder, mesmo que isto custe o sangue de uma nação. Já fui ateu, hoje sou cristão, católico e evangélico, e ainda freqüento os terreiros de candomblé. Digo amém quando for pra dizer amém, digo Aleluia se necessário. Beijo a mão do papa e abraço o bispo da Igreja Universal. Tudo pelo poder. Mas, o que posso fazer? Assim caminha a humanidade: é assim que o ser humano se torna um deus – curvando-se ao próprio poder e bebendo da sua ambição. E agora que vi isto, agora que senti como se juntam aduladores à minha volta, como as mulheres me desejam, como aumento meu capital, como a imprensa me procura qual mariposas famintas de luz, agora que sou poderoso, não abandonarei o lugar. Nada me impedirá de ser e ser e ser e ser o homem mais poderoso do Brasil. Eu. Poderoso e imortal. Ouviu Deus?! Não há quase mais nada entre eu e você. A gente já conversa de igual para igual.

Sobe som:

BCM está sentado numa mesa. Preside uma reunião. Mas os outros participantes não aparecem.

BG: Murmúrios. Gritos. Grunidos de porco. Sons de uma feira extremamente agitada.

BCM: Basta!

Silêncio.

BCM: Senhores, foi apresentada uma lista de nomes. Vocês discutem, discutem e não decidem. Por que? Porque se baseiam em argumentos políticos. Eu, que sou um homem de comunicação, porém, tomo por base o marketing. Nós não precisamos de um político, nós precisamos de um fantoche. Precisamos de alguém que, na história, presente, abrigue nossos interesses e seja um ícone para o povo. E, nesse caso, o melhor nome da lista é... Ferdinando I. Ele será o novo presidente do Brasil.

BG: Volta o barulho de feira. Relinchos de cavalo e vozes de outros animais.

BCM: Basta! Eu sei que muitos discordam. Queriam alguém com trânsito nos partidos tradicionais e na política nacional. Mas este é que é o grande lance de marketing. Qualquer outro nome da nossa lista sofre resistência diante do povo. Nós mesmos levamos ao povo o conceito de política como algo sujo, indecente, e que deve ser tratado à distância. Os políticos - dissemos ao povo - são todos uns bandidos, ladrões e marginais. Dissemos e vamos continuar a dizer. O povo jamais pode se interessar por política. Por isso temos que pegar uma carta que esteja fora do baralho. Um novato na área. Alguém que seja aceito pela população. Ainda mais agora que estamos saindo para as primeiras eleições pós-regime militar. O Brasil tem sede do novo? Pois, lhe daremos o novo: Ferdinando I.

BG: Volta o som de feira.

BCM: Eu sei. Eu sei. Mas não é difícil construir o mito. Ferdinando I não tem nada de moderno, nada de revolucionário, nada para acrescentar ao país. Mas nós o apresentaremos como exatamente o contrário, que é o que o povo quer. Daremos destaque na mídia para o seu governo em Alagoas. Alagoas será um exemplo de prosperidade para o Brasil. Mais do que isso, mostrará a luta de um homem contra as oligarquias, contra a burguesia, contra o poder econômico.

BG: gargalhada geral.

BCM (esboçando um sorriso): Faremos de Ferdinando I, o baluarte da moralidade. Ele será conhecido de ponta a ponta deste Brasil como o caçador de marajás. Então, eis Ferdinando, o destemido, o valente jovem que ousou enfrentar os usineiros de Alagoas. É carioca, mas para todos os efeitos será alagoano, um cabra macho nordestino. Mas, principalmente, um jovem idealista, corajoso. Não podemos esquecer este detalhe, porque só ele, com sua impetuosidade e sua coragem, será capaz de levar o Brasil à modernidade.

BG: Mais gargalhadas

BCM (rindo): A partir de agora nossas emissoras, nossos jornais, cobrirão seus passos. Sempre revelando a juventude e coragem de Ferdinando I. Senhores, proponho para presidente do Brasil, Ferdinando I, o caçador de marajás.

BG: Mais gargalhadas

BCM: Claro, os senhores aqui presente, banqueiros, empresários, homens de comunicação como eu, representantes do governo americano, industriais, políticos, latifundiários, sabem que não estou brincando. Já conversei com Ferdinando I e ele garantiu viabilizar o nosso projeto neoliberal. Mostrou-se disposto a acatar nossas propostas e obedecer as nossas orientações. Enfim, é o nosso homem. Concordam?

BG: Palmas. Hino nacional brasileiro.

Rei muda de roupa e se caracteriza como Ferdinando I. Usa jogging. Corre para um lado e para o outro. Sobe e desce escada. Sempre sorrindo, como se fosse fotografado e filmado o tempo inteiro.
Enquanto ele faz estes exercícios, voz em off lê as manchetes: “O presidente Ferdinando I pilota hoje um avião supersônico”. “Presidente Ferdinando I falou que é preciso modernizar nossas fábricas”. “O presidente Ferdinando I prometeu camisa de linho para todos os descamisados do país”. “O presidente Ferdinando I, entra numa usina nuclear”. “O presidente Ferdinando I salta hoje de para-quedas”. “O presidente Ferdinando I afirmou que tem o saco roxo”. “O presidente Ferdinando I é demais, gente!”. (entra sinal da TV Globo: plim-plim)

Ferdinando bota uma camiseta onde está escrito: “o tempo é senhor da razão”. Recebe BCM. O tempo inteiro se comporta como um atleta, e ao mesmo tempo um lorde – fazendo poses atléticas, ajeitando os cabelos, posando para fotógrafos imaginários..

BCM: Ferdinando...

FERDINANDO (posando): Ah!...

BCM: Ferdinando...

FERDINANDO (posando): Ah!...

BCM: Ferdinando...

FERDINANDO (posando): Ah!...

BCM: Basta Ferdinando. Você tem que nos dar atenção.

FERDINANDO: Atenção, o caralho, BCM. Eu sou Ferdinando, o presidente mais jovem eleito neste país. Eu sou Ferdinando primeiro e único.

BCM: Você não está seguindo nossas orientações.

FERDINANDO: E daí?

BCM: Nosso grupo não está satisfeito. Os americanos não estão satisfeitos. O povo não está satisfeito. E você fica só posando para as manchetes, Caras e bocas.

FERDINANDO: Vá se fuder! Eu sou eu, Nicuri é o diabo.

BCM: Ah é?... Aguarde.

BCM sai. Ferdinando arregala os olhos.

FERDINANDO (preocupado): O que será que ele vai fazer? (Arregala os olhos no seu jeito psicótico).

Ferdinando vai se transtornando à medida em que o locutor em off lê as manchetes: “O presidente Ferdinando disse agora a pouco que vai perdoar as dívidas dos marajás”. “O presidente Ferdinando é neto de um senador assassino”. “O presidente Ferdinando não consegue explicar as contas de sua campanha”. “O tesoureiro da campanha de Ferdinando, PC Farias, está envolvido com a máfia, e, suspeita-se, com a Yakusa japonesa”. “O povo nas ruas já comenta o empeachment de Ferdinando”.

FERDINANDO(arrasado, chorando): Não me deixem só...

Locutor prossegue com as manchetes: “Ferdinando não tem mais o apoio do povo”. “Um bilhão de pessoas nas ruas pede a saída de Ferdinando”. “Mini-série mostrada na nossa TV mostrou que a juventude pode se organizar e derrubar um presidente”. “Ferdinando não demora muito como presidente”. “Ferdinando caiu!” “Viva!”

Volta a penumbra.
Ouve-se as vacas mugindo, e o zumbido das moscas varejeiras. Livros caem do teto.

REI: O poder é afrodisíaco, o poder é mágico, o poder é rejuvenescedor. Ah, como é bom ser bajulado pela imprensa, pelos assessores, por todo este povo brasileiro. Isto é tão primitivo, mas confesso, é tão gostoso. Mesmo eu sendo um facínora, um bandido, um déspota, mesmo fazendo leis miseráveis, leis cruéis, mesquinhas, que só beneficiam os meus aliados, a elite, sempre haverá alguém para me bajular e temer meu poder. Mando uma cesta básica para a família no interior do Piauí que come lagartixa no almoço e sapo no jantar, e a televisão mostra a felicidade do pai e a alegria das crianças. E este pai diz: “o Rei Ferdinando II é bondoso”. Eu gostaria, às vezes, que mostrassem meu lado mau. Ah, como gostaria. Mas, sei, isto é impossível. Por razões políticas, claro. Mas também porque o mal de fato não se vê. Eu gosto quando todos me procuram para que resolvam seus problemas, os problemas que eu criei. Isto tudo para mim é muito humano. O ser humano é assim. Olho minhas vaquinhas circulando entre os móveis deste palácio e sei que elas não têm ambições humanas. Elas sim, foram criadas à imagem e semelhança de Deus.

A cena se repete.
BCM está sentado à mesa. Preside uma reunião. Mas os outros participantes não aparecem.
BG: Murmúrios. Gritos. Grunhidos de porco. Sons de uma feira extremamente agitada.

BCM: Basta!

Silêncio.

BCM: Senhores, foi apresentada uma lista de nomes. Vocês discutem, discutem e não decidem. Por que? Porque se baseiam em argumentos políticos. Eu, que sou um homem de comunicação, tomo por base o marketing. Porque nós não precisamos de um político, nós precisamos de um fantoche. Precisamos de alguém que, na história presente, abrigue nossos interesses e seja um símbolo para o povo. E, nesse caso, o melhor nome da lista é... Ferdinando II. Ele será o novo presidente do Brasil. Já tivemos um audacioso, agora é hora de colocar um comedido, um professor, um sábio, um mestre. Alguém que se ache e atue não como o presidente de uma República, mas, como um monarca, um rei. Alguém que diga, por experiência própria, que já foi um homem de esquerda, mas, modernizou-se, atualizou-se, e agora não é esquerda e nem direita. Porque direita ou esquerda, ele dirá, não existem mais. Dirá que o caminho, o único, já adotado por todo mundo, é o neoliberalismo, a globalização da economia.

BG: Murmúrios. Gritos. Grunhidos de porco. Sons da feira.

MULHER: Nossa virtude é sermos muitos. Não há um Brasil – há brasis. Nossa desgraça é sermos muitos. E por sermos tantos, sermos isto e aquilo, estas cores, estes odores, estas línguas, estas terras úmidas e áridas, por sermos assim, sem definição, apenas isto, Brasil, como se em um nome coubesse tanta gente diferente, e tanto não-ser também, enfim, por sermos o que não somos, padecemos da carência de pátria e povo. (pausa) Eles vieram e espalharam, e dizem até hoje, que está tudo bem, que basta torcer pela seleção brasileira e comprar o novo disco de pagode para ser brasileiro. Mas eu digo, não. Eles também disseram que devemos odiar o negro, o índio, o pobre. E tanto insistiram que fizeram pobre odiar pobre, Brasil odiar Brasil. Eles fizeram mais: disseram que eles são daqui e nós é que somos estrangeiros. Eles, que são tão poucos, falando essa língua empolada, falsa, importada, fizeram-nos crer que temos que ser feito eles um dia. E a gente sabe que nunca seremos assim – não temos a pele cremosa deles, a língua ferina deles, não sabemos usar o desodorante que oculta o odor de bosta de gato que exala de suas axilas depiladas.

Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui