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Ensaios-->O Pesadelo de Raskolnikov -- 26/01/2000 - 09:44 (Edson Amâncio) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O PESADELO DE RASKOLNIKOV


A análise dos sonhos nos romances de Dostoiévski constitue uma das mais fascinantes aventuras para quem se propõe estudar sua obra. Isto é particularmente verdadeiro em relação a um de seus principais romances: Crime e Castigo. Dostoiévski, profeticamente, já procurava se defender da bisbilhotice futura dos psicanalistas, ao fazer a famosa alocução que se encontra em Os Irmãos Karamasov, durante o julgamento de Dmitri. Como se sabe, Dmitri não matou o pai, quem o fez é Smerdiakov, o bastardo, o epiléptico que se enforcara em seguida ao assassinato do velho Fiodor Pavilovitch. Com o pai assassinado, Dmitri é acusado. Tudo conspira para que seja ele o criminoso. Ele porém nega. É então, no julgamento, que o advogado de defesa, usando os mesmos argumentos do promotor, faz o raciocínio às avessas, isto é, citando os mesmos fatos indiciadores da culpa de Dmitri, inocentando-o, demonstrando portanto sua inocência com a mesma eloquência que o promotor demonstrara sua culpa. O que o advogado diz é o seguinte: '...embora a psicologia seja uma coisa muito profunda, é também uma arma de dois gumes', e desenvolve a partir daí seu racioncínio, para no final concluir: 'Eis pois um psicologia inteiramente di-versa. Foi de propósito, senhores jurados, que também recorri à psicologia: era para vos mostrar que dela se pode tirar o que se quer. Tudo depende daquele que tem mania de psicólogo. Os espíritos mais sérios se podem deixar arrastar à criação de romances, pela psicologia. Refiro-me, é claro, ao emprego excessivo desse método, senhores jurados.'
É evidente que Freud, muitos anos depois, irá se sentir incomodado com essas afirmações de Dostoiévski e, no seu artigo 'Dostoiévski e o Parricídio' vai asssinalar: 'O parricida é, com efeito, outro irmão, ao qual Dostoiévski atribui singularmenbte sua própria enfermidade, a pretensa epilepsia, como se quisesse confessar que o neurótico e epiléptico que nele havia era um parricida.' E continua: 'E em seguida prossegue, diante do tribunal, com a famosa burla contra a Psicologia, chamando-a de arma de dois gumes. Não é a Psicologia que merece a burla, segue se defendendo Freud, mas o processo judicial. É indiferente quem haja relmente cometido o crime, para a Psicologia, o único que importa é quem o tenha desejado em seu fôro íntimo e tenha apreciado sua realização, e por isto são igualmente culpados todos os irmãos - com a única excessão de Aliocha.'
Quando Freud diz que 'para a Psicologia 'o que importa é quem tenha desejado o crime e tenha apreciado sua realização', está falando da morte do próprio pai de Dostoiévski. Segundo Freud, quando Dostoievski recebe a notícia do assassinato do pai, ele tem sua primeira crise epilética, com os dois componentes da crise: primeiro, sente a aura extática, a felicidade suprema, evidentemente, ainda sempre segundo Freud, por ter sabido do assassinato do pai, em seguida tem o verdadeiro ataque epilético, cai ao chão e se bate inconsciente - para Freud, a punição imediata por ter desejado a morte do pai. Não é sem razão que Proust dizia que toda a obra de Dostoiévski poderia se chamar Crime e Castigo.
Freud é enfático ao declarar que o crime originário que trabalha em surdina no universo subterrâneo de Dostoiévski é o parricídio. Seus argumentos se baseiam na informação admitida - pelo menos até 1928, quando Freud publicou seu artigo - de que o pai de Dostoievski, o Dr. Mikhail Dostoiévski, fora assassinado em Daravoi pelos servos. Este fato, de uma certa maneira, selou o destino de Dostoiévski. Independente da veracidade dessa informação, o que importa para Freud, não é o fato em si. O que realmente não pode ser menosprezado é a convicção íntima de Dostoiévski de que seu pai fora morto tragicamente, assassinado pelos camponeses. Na ficção de Dostoiévski é muito dificil fazermos vista grossa para a grande tolerância, a profunda simpatia do autor pelos criminosos. Vai muito além da simples compaixão, como já assinalava Freud. É como se alguém que aspirasse assassinar outro já não o precisasse fazê-lo, porque alguém já o fizera por si, não restando-lhe outra alternativa que a de tornar-se extremamente dócil e agradecido àquele que o fizera. Há uma cena em Os Irmãos Karamasov, na reunião em que a família faz na presença do santo, o staretz Zossima, no mosteiro, quando o starez entra na sala e vê Dmitri - aquele que é potencialmente o assassino do pai - o monje se atira a seus pés. Sem dúvida uma cena incompreesível. A primeira impressão é que estamos assistindo o santo venerar o delinquente, o criminoso, mas Freud vai buscar aí a interpretação para a tolerância de Dostoiévski como os criminosos. Para ele o monje não se ajoelha por admiração (obviamente não haveria razão nenhuma para isto), mas como se repelisse em si a tentação de desprezar o assassino, de condená-lo.
Não há dúvida que toda a evolução temática da obra de Dostoiévski poderia se definir como um esforço gigantesco do escritor para alcançar a tomada de consciência de sua identificação (certamente inconsciente) com os assassinos de seu pai, que representam para ele os instrumentos da sua intenção parricida.
Para Freud não há dúvida de que esta simpatia pela identificação determinou decisivamente em Dostoiévski a escolha dos seus temas literários. 'Primeiro, diz Freud, tratou do criminoso comum (o que age por egoismo), e logo do delinquente político e religioso, e somente já no fim da sua vida, do delinquente primordial - o parricida - deixando-nos sua confissão da maneira poética.'
O criminoso comum de que nos fala Freud em seu artigo é, sem dúvida alguma, Raskolnikov, de Crime e Castigo, que possuído por seu delírio, mata a velha usurária.
Mas quem é esta velha usurária? Qual é o crime cometido por Raskolnikov? E qual a relação deste crime com o parricídio?
Há duas maneiras mais ou menos indiretas, de responder estas questões.
A primeira delas seria analizar as relações que Raskolnikov mantem com a velha usurária e os outros personagens femininos, inclusive sua mãe.
A segunda seria saber sob que formas a usurária aparece nos pesadelos de Raskolnikov.

Comecemos pela relação de Raskolnikov com a velha usurária. O que ela tem de comum com a própria mãe de Raskolnikov? Aparentemente nada. Pulkéria, a mãe, é inteligente, honesta, bondosa, carinhosa, astuta; a usurária é ácida, mesquinha, sem escrúpulo, nem mesmo na idade se assemelham. Mas quando analisamos todas as relações que o herói estabelece com as mães no romance podemos observar que há pelo menos um denominador comum: uma dívida! uma dívida que é financeira mas também moral! Ele deve à velha usurária que o socorre com a hipoteca e é à velha que ele vai tirar a vida. Ele deve à mãe que o sustenta com sua penção miserável, que aceita favores humilhantes para ajudá-lo. Ele deve à dona da penção a quem não tem dinheiro para pagar o alojamento e que lhe socorre quando está doente.
E como resolver esta questão? Como atingir e realizar as esperanças da mãe e da irmã que depositam nele a con-fiança de seus próprios futuros? Como atingir o êxito por seus próprios meios? Como prosseguir seus estudos na Univer-sidade que já abandonara por absoluta falta de condições para pagá-la? Como tirar da velha usurária o penhor?
É em parte para se libertar da dívida assumida com sa-crifícios por sua mãe e irmã que Raskolnikov vai matar a ve-lha usurária. Não esqueçamos aqui que Raskolnikov é ideali-zado pela família - mesmo ainda quando já se encontrava na prisão sua mãe ainda espera que ele vai se tornar um grande advogado, um escritor famoso. Essa idealização, essas exi-gências ideáis tão elevadas que pesam sobre ele também serão pulverizadas quando ele desce o machado sobre a cabeça da pobre velha. Nesse ato ele destroi a idealização que lhe fora imputadaa, desidealiza, destruindo a velha.
Por outro lado é curioso observar que as mulheres com as quais Raskolnikov mantém algum tipo de relacionamento não estão jamais sozinhas: a usurária e sua meia-irmã Lizaveta, Katarina Ivanova e Sônia, a dona da penção e sua filha, en-fim sua própria mãe e a irmã Dúnia e, talvez indo um pouco mais além nas relações do heroi com as outras mulheres do romance, as moças, as filhas dessas mesmas mães, vamos en-contrar sempre presente o tema do salvamento. Há na postura do heroi uma busca permanente para as situações de salva-mento dessas mulheres da posse de suas respectivas mães. É como se a dívida com as filhas pudessem ser saldadas de al-guma forma, quer seja livrando Dunia das garras de Lujin, aproximando-a do único amigo em quem confia, Rasumichkin, quer seja ajudando Sônia a se afastar da prostituição, li-vrando-a da mãe, levando-a consigo para a Sibéria. Contudo a dívida em relação às mães é absolutamente impagável. E o que vai acontecer a cada uma dessas mães? Todas morrem sucessi-vamente no transcorrer do romance: Katarina Ivanova (mulher de Marmeladov) e Marfa Petrovna (mulher de Svidrigailov) e, já no final do romance, a própria Pulkeria Alexandrova, a mãe de Raskolnikov.
A dívida impagável às mães adquire em Crime e Castigo uma dimensão trágica pelo assassinato da usurária, já no início do romance, sendo a mãe, morta justamente no fim do romance, conforme já assinalamos. E porque morre a mãe de Raskolnikov? Justamente ao descobrir o ato cometido por seu filho (o assassinato). É esta descoberta que 'mata' literal-mente Pulkeria Alexandrova. E aqui um derradeiro fato cu-rioso: é exatamente após esta morte da mãe, quando Raskolni-kov está cumprindo sua pena na Sibéria, que ele ousará con-fessar seu amor à Sônia.
Há entre os psicanalistas os que admitem que Sônia pode ser identificada como o duplo manifesto de Lizaveta (a se-gunda vítima morta acidentalmente por Raskolnikov), e a usu-rária como o duplo oculto da imagem da mãe.
Um dado interessante e que precisa ser lembrado na con-tinuação dessas observações é que Lizaveta, embora solteira, está sempre grávida, embora os pais dessas crianças e as próprias crianças, serem desconhecidas no romance.
Mas o personagem mais onírico de todo o romance é mesmo a velha usurária. Raskolnikov a identifica a uma bruxa e à um animal infeccioso, ela assombra os delírios de Raskolni-kov e também seus pesadelos. Raramente Raskolnikov ou qual-quer outro personagem pronuncia seu nome.


Um dos aspectos que mais nos chama a atenção nos roman-ces de Dostoiévski é justamente a afinidade que eles guardam com o universo do sonho noturno. Falei de propósito 'sonho noturno', o sonho do sono, para diferenciá-lo do sonho acor-dado, do delírio, vamos dizer assim, quer permeará o pensa-mento de Raskolnikov durante quase todo o desenrolar da trama. Crime e Castigo não é só o romance mais pesado, mais negro de Dostoiévski, é também o que mais se aproxima da at-mosfera do sonho. Em nenhum outro romance Dostoiévski segue com tantas minúcias as relações do sonho acordado - o delí-rio ou espécie de delírio do heroi - e o sonho noturno, quer dizer, o pesadelo. Em nenhum outro romnce Dostoiévski esta-beleceu uma relação tão estreita entre o sonho dos persona-gens e a ação do romance, o desenrolar da trama. Se esses sonhos fazem alusões a acontecimentos da infância do autor ou a temas literários, como é o caso do primeiro pesadelo de Raskolnikov, inseridos no connjunto do romance esses sonhos parecem se ajustar perfeitamente, permitindo-nos explicar ou tentar explicar a psicologia dos personagens aos quais eles pertencem.
Os sonhos surgem nos momentos de crise do destino dos personagens e participa da sua evolução quando acordados. Assim, tanto às vésperas de cometer o crime, como anteci-pando o castigo do heroi, o romancista nos descreve dois dos seus terriveis sonhos. E é sobre o primeiro deles, vamos nos ater agora.



Às vésperas de assassinar a velha, quando Raskolnikov já recebera a longa carta de sua mãe, anunciando a humi-lhação que sofrera Dunia na casa de Svidrigailov e o arre-pendimento posterior do mesmo, que procurara inocentá-la diante de todos; relantando também o aparecimento do empo-lado Lujin, que pretende casar-se com Dunia; o dinheiro que ela conseguira emprestado, etc, etc., Raskolnikov estava num estado quase desesperador. Já visitara a velha. Já vira onde ela guardava o cofre, já subira aquelas escadas inúmeras ve-zes, já escolhera o momento, a hora de assassiná-la, o ins-trumento com o qual cometeria o crime, mas ainda vacilava: 'Terei forças suficientes para fazer aquilo?' pergunta-se a todo instante. O recebimento da carta da mãe com a sequência de humilhações alí entrevistas o deixa em total desespero.
No seu pensamento ele passa em revista a carta. Citemos algumas frases de Raskolnikov para ilustrar seu estado de espírito: ' A coisa é clara, resmungava, amarga e ironica-mente... Não, mamãe, não, Dúnia, naõ chegarão a me enganar. E ainda se desculpam por não me terem consultado, decidindo a questão sozinhas.... Que belo pretexto as duas alegam... Qual! Não, Dunetchka, eu vejo muito bem e sei de que natu-reza são as coisas que tens par me dizer... e... o noivo parece bom... Esse 'parece' é o mais lindo de tudo. E Dunet-chka vai se casar acreditando na aparência. Que maravilha!' E vai por aí a fora.
É neste estado de espírito atormentado que Raskolnikov se encontra às vésperas do assassinato, ou antes, do pesa-delo. A determinada altura ele diz: 'Irei a casa de Razu-mikhin, é certo... porém, não agora... Irei à casa dele, mas no dia seguinte, depois da coisa, quando a coisa tiver sido concluida e quando tudo tiver mudado...' 'Depois da coisa, exclamou sobressaltando-se; mas esta coisa acontecerá, acon-tecerá verdadeiramente?'
Nesta situação ele tem um sonho, no qual se revê criança, na cidadezinha onde morava, com sete anos, os luga-res onde costumava passear com seu pai, nos arredores da ci-dade, em pleno campo. Próximo havia uma taberna, na porta vários bêbados se esmurravam, de degladiavam com frequência, e o menino se agarrava fortemente ao braço do pai, com medo. Não longe da taberna havia um cemitério, onde ele costumava ir com seu pai e sua mãe, ouvir a missa que mandavam cele-brar pela alma de sua avó, morta há muito tempo, e que ele não conhecera. Perto do túmulo de sua avó achava-se um outro túmulo pequeno, que era de seu irmão mais moço, morto com seis meses, que ele também não conhecera.
O sonho era assim: ia junto com o pai pelo caminho do cemitério e passam defronte à taberna. Vê-se uma multidão de indivíduos suspeitos à porta. Alguns estão bêbados e cantam. Na porta está parado um carroção esquisitíssimo, uma dessas carroças onde geralmente estão atrelados grandes cavalos de carga e que servem para transportar mercadorias e barris de vinho. Porém agora, está atrelado à carroça uma pequena égua, magra, quase morta. De repente um grupo de camponeses, liderados por um mujique bêbado, saem à porta da taberna, montam na carroça e querem colocá-la para andar com o excessivo peso. A égua esperneia mas não sai do lugar. O mujique começa a espancar o pobre animal. Alguns gritam que lhe bata nos olhos, no focinho, na cabeça. A cruel pancadaria faz a égua desabar. Num último esforço ela consegue erguer uma ou outra pata e escoiceia, para logo em seguida cair de novo sob o peso dos açoites que não param. O menino solta o braço do pai e corre para a cena do espancamento e se abraça á égua, chorando, beijando-lhe o focinho, a boca. A égua está morta, largada no chão. O pai se aproxima, pega-o de novo pelo braço e o tira dali. Nesse ponto Raskolnikov acorda, os ca-belos encharcados de suor, arquejante: 'Graças a Deus que tudo não passou de um sonho'. Em seguida se per-gunta:'Senhor, poderá ser, mas será que posso pegar, de ver-dade, num machado para esmigalhar-lhe o crânio? Será possi-vel que eu possa lavar-me em sangue quente, viscoso, que eu force uma fechadura, roube, trema, e me esconda todo ensan-guëntado?... com o machado? Mas, meu Deus, isso será possí-vel?'

Muito já se disse que contra sua passividade total diante das mulheres, Raskolnikov se defende tentando se identificar com um ideal masculino: Napoleão. 'Posso ou não, me transformar em um Napoleão?' é a pergunta que ele se faz a uma certa altura do romance. O desdobramento dessa per-gunta à luz da psicanálise se transmuda no seguinte: 'Posso ou não, abandonar minhas inibições sexuais diante das mulhe-res?' ou ainda: 'Posso ou não, ser ativo como o pai?' Para os psicanalistas - Freud já o assinalara antes -, a tendên-cia a se identificar ao pai sedutor e sádico é denunciada em dois episódios no começo do romance: em um deles Raskolnikov desiste de socorrer a uma menina de 16 anos, embriagada por um sedutor, que espreita o momento propício para se atirar sobre ela; o outro é constituido pela descrição do sonho de Raskolnikov, pelo espetáculo central do assassinato da égua, morta por um mujique, espetáculo que o heroi assiste como criança, em companhia do pai, como já vimos. Segundo alguns investigadores, os golpes infligidos à égua representam o conteudo de uma cena primária típica, que acentua a concepção sádica do coito para a criança. No entanto, se muitos estudiosos concordam nesse ponto, divergem quanto a indicar a qual (ou quais) dos personagens do sonho (o menino, pai, mujique, égua) o sonhador se identifica, e de que maneira. Quanto a velha égua, que esperneia debaixo da carroça, com o peso da verdadeira multidão sobre as suas costas, parece pacífico que Raskolnikov a identifica com a velha usurária à qual, segundo sua própria teoria, já a classificara como inutilidade social, entulho. Por outro lado, os que identificam Raskolnikov com o mujique sádico que espanca a égua - para eles esta identificação representaria uma defesa contra sua identificação com a velha égua maltratada e portanto, em última análise, com a mãe, possuida pelo pai - ou, se preferirem, 'violentada' pelo pai. Para eles a usurária seria menos identificada à égua e mais ao pai sádico. É opinião corrente entre os psicanalistas que se detiveram na análise de Crime e Castigo, que o verdadeiro crime de Raskolnikov seria a morte inconsciente do pai.
É interessante notar que o sonho da égua espancada funciona como uma espécie de elo entre os temas, digamos assim, subterrâneos de Crime e Castigo e temas que serão desenvolvidos mais tarde em Os Irmãos Karamasov. Esses temas recorrentes, sem dúvida, remetem ao drama pessoal do romancista. É curioso ainda salientar neste sonho, o único no qual aparece o pai carnal de Raskolnikov, e no qual parece haver uma correlação entre o pai que assiste impunemente ao assassinato do animal maltrado pelo mujique, evocando possivelmente para o romancista seu próprio pai, assassinado pelos mujiques da aldeia. Aliás existe uma espantosa analogia entre a forma que Raskolnikov defende o animal maltratado no seu sonho, e a maneira que Iliucha Sniéguirov, a menina de Os Irmãos Karamasov defende seu próprio pai contra a cólera de Dmitri, o irmão Karamasov onde os impulsos parricidas são mais eviden-tes.

Há um momento em Crime e Castigo, no qual Raskolnikov, logo após ter assassinado a velha usurária, se apressa para socorrer Marmeladov, que se jogara sob as patas dos cavalos de uma carroça. A interpretação desta cena nos permite identificar aí de uma espécie de deslocamentos do sentimento de culpa, oriundo no assassinato da velha, deslocamento este em direção a um substituto paternal, sinal de que no homicídio foram descarregadas as impulsões parricidas e que, no inconsciente, a usurária se associa também à imagem do pai. É interessante observar como Dostoiévski mescla personagens e situações reais com ficcionais. Nesse sentido vale a pena lembrar que Marmeladov é personagem inspirado em Issaiev, o ex-marido da sua primeira mulher, Maria Dmitrievna. Ao que tudo indica, adicionado ao drama do exílio siberiano em Semipalatinski, pelo menos em algum momento, Dostoiévski amargava culpa por amar a mulher do amigo, com a qual viria a se casar, após o falecimento deste.

Parece não haver dúvidas de que os impulsos parricidas já estão presentes em Crime e Castigo, mas somente 15 anos mais tarde Dostoievski vai ousar abordar diretamente o assunto em Os Irmãos Karamasov. Ali, aliás, Dostoiévski como que 'pássa ao ato', muito embora se trate de um ato cometido por um personagem romanesco.
Há ainda um pequeno detalhe bastante significativo em Crime e Castigo. Quando Dostoiévski escreveu a primeira versão, na primeira pessoa, e o chamou de Diário de Raskolnikov, criou uma cena que veio a suprimir no romance definitivo. Nastácia, a empregada da penção, comentando a morte de Lizaveta diz: 'Não sabe que lhe abriram o ventre? Estava grávida de seis meses. Era um menino. Estava morto.'
Não parece portanto casualidade, o fato de que na pri-meira parte do sonho, Raskolnikov, antes de assistir à morte da égua, tenha visitado o túmulo do seu irmão caçula, morto aos seis meses de idade.
O diálogo prossegue e Nastácia confessa que o menino morto era filho de um médico, induzindo-nos à alusão com o próprio pai do escritor, também médico.
Para ficarmos apenas na análise deste único sonho de Raskolnikov, é possívil extrair daí, não só os temas do parricídio, do crime, do castigo, mas ainda resvalar nas relações incestuosas, no homossexualismo e outros que procuraremos abordar em outra oportunidade.
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